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Mostrando postagens de 2007

Chuveiros

É difícil sair da sala sem acordar o cachorro. Ele fica com a cabeça no chão, cobertorzinho na boca, fingindo acompanhar meu sono, mas ao menor movimento, levanta e quer brincar. Agora penso naquela história de que cachorro se apega aos donos e não à casa. Pelo menos neste quesito ninguém pode me chamar de cachorro. Desde pequeno tenho a característica de me apegar exageradamente aos locais onde resido. Depois de morar os primeiros nove anos da minha vida em um apartamento com meus pais e irmãos, os velhos resolveram que o lugar estava pequeno. Era um apartamento no décimo andar de um edifício que leva o nome da minha avó, e não por coincidência. O terreno era de meu avô, e o nome do edifício, as lojas do andar térreo e mais três apartamentos foram o preço que meu avô cobrou dos construtores. Um dos apartamentos ficou para meus pais. Meses antes de mudarmos para o novo apartamento, que ainda estava em construção, os novos donos do nosso exigiam a entrega. Um de meus tios tinha ficado c

Volta antecipada

Pois é, voltei! Não deu para ficar tanto tempo longe quanto eu planejava, mesmo por que a pinta das costas era só uma sujeira antiga que encracou. Uma esponja nova resolveu o assunto. Já me acostumei com o travesseiro novo e as meias já estão acostumadas com os meus pés. Além do mais, sei que vocês não aguentam mais de saudades das minhas bobagens. Espero que os três tenham se comportado. O que? Só dois? Como assim desistiu? Bom, falando em mudanças, tenho um texto sobre chuveiros. Abraço a todos.

Já volto ...

Amigos leitores, devido a uma série de mudanças radicais em minha vida (travesseiro novo, mudança no enxoval de meias e uma pinta nova que apareceu aqui atrás do ombro) vou dar um tempo nos meus escritos. Prometo que volto logo, daqui a umas quatro ou cinco semanas. Enquanto isso eu sugiro algumas coisas, como largar o mouse e sair para ver o sol, comer um sanduíche de pernil da mineira, falar mal do Lula ou até mesmo ler outras coisas mais interessantes. Mas não esqueçam de mim, pois espero sinceramente encontrá-los por aqui quando voltar. Todos os três, por favor! Abraços

Crochê e Dominó

Doutor Bragança acordou cedo naquele dia. Tinha desses nomes Imperiais afetados, mas era pessoa simples e de boa lida. Era simples até para acordar. Sem estardalhaço rolava para o lado da cama, calçava seus chinelos de couro velho e ia fazer o primeiro xixi do dia. Fazia muitos, coisa da idade que andava beirando os oitenta. Conheceu Dona Genalva quando já não tinham mais os dentes próprios, no banco da praça. Ele jogava dominó na mesinha com seu companheiro de todos os dias, o Seu Armindo, enquanto ela mexia agitada as agulhinhas de crochê. Fazia muito tempo que estavam de flerte, parece que uns três ou quatro dias (muito tempo nessa idade é contado em dias), quando o distinto Doutor Brangança finalmente tomou coragem, caminhou lentamente até o banco onde estava a Dona Genalva, pediu licença para sentar-se a seu lado e iniciou um longo papo, que durou mais de ano. Casaram-se logo, pois não tinham tempo a perder. Iam todos os dias à praça e, quando ele cansava de jogar, gritava para

Canecas

Em casa, Marco e Lili não têm condições de receber mais do que meia dúzia de pessoas para um jantar, faltam talheres, pratos e, principalmente, lugares à mesa. Entretanto, se um número absurdamente grande de amigos e parentes resolverem aparecer ao mesmo tempo para tomar um boa caneca de café, as têm para todos. Já improvisaram um pendurador de metal para elas, mas tanto este quanto os armários continuam enchendo. Eles têm de todos os tipos, a saber, das de viagens, das com mensagens de amor, das engraçadinhas, das de propaganda; têm até uma na qual se pode escrever recadinhos com uma caneta especial. Elas não param de chegar, é como se fossem programadas para acabar na casa do casal. Marco às vezes desconfia que no silêncio da noite, com insônia causada pela cafeína, elas se reproduzam. Safadas estas canecas. Marco e Lili têm problemas também quando alguém viaja. Como já criaram a fama de colecionadores, a cada vez que um conhecido escapa de férias ou a trabalho, uma ou mais os são da

O preço da liberdade

Era em torno de quatro da tarde, o sol estava com tudo e o clube cheio. Em um dos cantos da grande propriedade havia um descampado enorme no pé de um declive do terreno, não tão alto, nem tão baixo. Foi ao longo deste declive gramado que as pessoas estavam acomodando-se para assistir à corrida de cavalos organizada pelo clube, com o muito criativo nome de Horse Cross. Aliás, tema de uma próxima história devera ser a capacidade que o povo da minha cidade têm de inventar nomes criativos para as coisas, como a locadora de vídeos que se chama AtreVídeo. Que tal hein? Entendeu? Voltando, a competição se daria justamente no terreno descampado, com alguns obstáculos para dar mais emoção e testar a habilidade dos cavaleiros da cidade, que mais tarde provou-se das menores. Para ser honesto, não lembro de muita coisa, não porque minha memória não me ajuda, mas porque eu não estava dando a menor importância para o evento. Ficar sentado na grama, debaixo do sol, vendo um bando de rapazes da "

Seu Dudu e Seu Cominho

Seu Dudu e Seu Cominho foram figuras que fizeram parte da minha infância, e da minha adolescência em parte. Um era do dia, outro da noite. Ambos capitaneavam, em seus respectivos turnos, a portaria do Edifício Paraíso, onde passei todos os Janeiros ou Fevereiros daquele período, dependendo da escala familiar para utilização do apartamento da praia. Seu Dudu andava arrastando a perna, que tinha uma ferida sempre grande e exposta, como se fosse uma vítima de guerra. Diziam que era uma queimadura grave, sofrida em um acidente de trabalho, mas ninguém tinha certeza. Sempre que ligavam para a portaria ele saudava com fala ensaiada e, por todos os anos que consigo me lembrar, idêntica. Seu Cominho era menos formal, tinha cara de desconfiado e um sorrisinho malicioso de canto de boca. Parecia gostar de todos nós pirralhos, mas dava a impressão que estava sempre a ponto de perder a paciência. De qualquer forma, nossa turma era grande o suficiente para deixarmos os porteiros em paz. Aliás, port

Um momento de triunfo

Quando o pai sentou-se à frente do artista, os dois filhos já tinham passado a sua parte da vergonha. Uma vergonha que valeria a pena, pois imortalizaria as três ótimas semanas que haviam passado juntos, reforçando, ou quem sabe até relembrando, a amizade insubstituível entre pai e filhos. A esta altura já havia em volta do mais velho um bando de turistas, que não paravam de rir enquanto aguardavam a vez de ter suas características mais peculiares exageradas ao extremo pelas mãos habilidosas do caricaturista. Os dois irmãos também não conseguiam parar de rir, dos próprios rostos estampados na folha branca, e do que agora aparecia aos poucos entre os dois. Acabada a obra, o artista a enrolou prendendo-a com um elástico, recebeu seu dinheiro e partiu para a próxima vítima. Os três saíram abraçados, felizes, exaustos de toda a andança de turistas e com saudades de casa. Pararam em um dos restaurantes que circulam a praça dos artistas e pediram um prato típico de mariscos ao molho de vinho

Affection

Apesar de os grandes amigos sempre merecerem nossas homenagens, este texto não se presta propriamente a isto. Quero aqui fazer apenas um justo e tardio reconhecimento ao grande letrista que é este amigo em questão. Conhecemos-nos há uns 15 anos, quando estávamos no segundo grau e o interesse comum pelo rock'n'roll nos levou a uma amizade que dura até hoje. No meio deste tempo, nos primeiros anos da faculdade, não aguentamos nem 15 minutos de um jogo chatíssimo de RPG que uns amigos estavam promovendo, quando resolvemos ir até uma locadora de CDs que tinha aqui em Curitiba. Meu amigo havia recebido umas recomendações de uma banda chamada Bad Religion, que valia a pena escutar. Até então, o rock mais barulhento e rápido que eu suportava era o das novas bandas de Seattle, que estavam surgindo naquela época. Ele também estava mais para Iron Maiden do que para uma banda de hardcore da Califórnia. Mesmo assim, pegamos os dois CDs mais recentes de Greg Graffin, Mr. Brett e companhia e

Se não fosse o cincão ...

Os arpejos de mamãe me levaram ao suicídio. Ô velha estridente. Minha vida era boa até, meio sem sal, mas boa. Só não dava para aguentar a gritaria que ela fazia o tempo todo. Como ainda faltava muito para ter condições de sair de casa, resolvi encurtar o caminho. Ainda era virgem, não tinha feito grandes males a ninguém, respeitava meus pais, não fumava, não bebia e não torcia pro Flamengo. Pela minhas contas, com exceção do pecado de tirar minha própria vida, tinha boas chances de escapar das Trevas. No máximo um breve estágio pelo Purgatório, mas como tinham acabado de decidir que este não existia mais, minhas chances de ir direto para o Paraíso eram altas. Comprei um tubo de veneno para ratos e mandei bala. Ferrou, vim parar direto no caldeirão do chifrudo. Aparentemente aquele cincão que eu roubei da caixinha da cozinha semana passada é que desempatou o embate entre Deus e meu atual chefe. Este relato é breve pois os intervalos aqui são muito curtos e extremamente vigiados. Falar

Então Junte

Anos depois, acabei vendo sem querer um episódio do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Era o famoso episódio da série antiga em que aparece o Minotauro em seu labirinto. Na hora em que apareceu o dito cujo, não sei se me assustei com as lembranças do susto que tive na infância ou com a péssima qualidade da fantasia que criaram para o infeliz do ator, que aliás já deve estar de saco cheio de ser chamado de chifrudo. Inacreditável como uma coisa tão mal feita podia ser tão convincente. Se uma criança dos dias de hoje, em um dia no qua a TV a cabo esteja com defeito, acabar em uma rede de sinal aberto e assistir ao episódio, vai querer saber porque aquele tio está com aquela máscara brega de chifres de papelão. Se chorar, vai ser porque está perdendo o episódio diário de Backyardigans, ou qualquer outra coisa que as crianças adoram hoje em dia. Apesar de ainda não ter filhos, tenho acompanhado de perto a infância da minha sobrinha, que aos quatro anos já sabia navegar pela Internet, em sites tão

Rodolfo e a estátua no paraíso

Oito dias depois, sem avisar ninguém, Rodolfo foi embora daquele lugar imundo. Não aguentava mais o cheiro azedo de cerveja choca e de restos de comida espalhados pela casa. Preferia passar as férias de outro jeito, com ar fresco e quem sabe uma namorada nova. Pegou sua magrela e saiu pedalando em busca de um lugar para ficar, sem previsão de voltar para casa. Já estava na terceira praia vizinha quando encontrou uma pousada pequenina, com uma placa de madeira pendurada acima da porta de correr, e o nome: Paraíso. Entrou e quis saber da diária, que dependia de uma série de coisas como o nome do hóspede, idade, profissão e tamanho das unhas. No caso dele o valor era acessível, de tal sorte que ficou. Tinha unhas bem cortadas e bem cuidadas. Passou vários dias circulando pelo vilarejo, curtindo o visual da praia e se apaixonando pela filha do dono da pousada, uma menina de uns vinte e poucos anos, com rosto queimado do sol e cabelos longos e ondulados até o meio das costas. Depois de to

Martinha na Chuva ou o Gringo da Testa Cortada

A não ser que a chuva parasse, Martinha ficaria em casa curtindo a sessão da tarde. Ela odeia a chuva, não porque molha, mas porque tolhe. Gosta de movimento, de ter as mãos livres, de entrar e sair, e na chuva não dá. O fato é que seu enclausuramento não durou meia hora. Era algum Duro de Matar que passava, se não estou enganado o segundo, e ela tinha acabado de se esticar no sofá quando o celular tocou. Seu irmão Arnaldo a chamava de emergência, havia se envolvido em um acidente de automóvel. Martinha pegou a jaqueta, a sombrinha de bolinhas que quase nunca usa e saiu correndo. Arnaldo era bem mais novo, e como não tinham mais os pais, Martinha cuidava dele. Saiu se reclamando, pisando forte nas poças d´água até chegar ao seu carro, que estava estacionado uma quadra para baixo. Não tinha garagem onde morava. Martinha tinha um Fiat Oggi zerinho , com o qual ensinara Arnaldo a dirigir. Entrou no carro e saiu cantando os pneus. Ou eu imaginei assim, pois não tenho certeza se o Oggi cant

Pobre homem

Ele está perdido, completamente perdido. Coitado, o que foi que fizeram com ele. Deram-no a majestade, mas tiraram-no o reino. Pobre homem. Quem? Como assim, vocês o conhecem, não tenho dúvidas. Ele está por aí, é só ver. Pobre homem. Continua mandando, continua pomposo, ainda pede reverência e fala só, à mesa de almoço. Manda em tudo, mesmo tudo sendo quase nada. Perdeu o reino, mas ainda é rei. Pobre homem. Mais pobre de nós, pessoas com rei, sem reino e felizes.

A confusão entre o brabo e o chato

Gosto de ir a pé, especialmente com meus fones no ouvido. Dá a noção real de tempo e espaço, ou melhor, a noção tradicional de tempo e espaço, pois a real ainda não se sabe se existe. Como trabalho em um lugar isolado, quando estou na cidade saio andar pelas ruas. Outro dia saí pela vizinhança. Já ia longe quando começou a tocar no aparelhinho uma velha canção que eu havia escrito. Era uma das minhas melhores e me fez lembrar do tempo em que a escrevi. Outros tempos como diriam os melancólicos. Sou melancólico. Esta é a história desta música, ou o relato de como esta história virou música, ou qualquer coisa do tipo, que envolva a história e a música. Não acredito que se faça boa arte sem sofrimento. Talvez por isso minhas composições sempre foram medíocres, tive até aqui uma vida muito boa. Sem pai autoritário, mãe desequilibrada, irmão traficante, nada disso. Também nunca vivi grandes decepções amorosas. Desta forma, para conseguir compor, acabei criando um personagem sofrido, mal

O primeiro cacho de bananas

Seguindo os passos dos irmãos, quando tinha dezenove anos resolveu vir viver no Brasil. Desembarcou em Santos, no início do século passado, com poucas libras no bolso, menos ainda palavras em português no vocabulário, e uma vontade enorme de vencer na vida. Sua primeira aquisição, assim que desembarcou do navio, foi um cacho de bananas, que na Síria era artigo de luxo, e aqui estava a preço de tâmaras. É claro que depois de várias horas de trem, quando chegou ao seu destino final no interior do Paraná, as bananas estavam podres. Sua tristeza durou pouco quando descobriu que lá o preço era o mesmo. Apesar do sangue de mascate, veio de Homs como ourives, e ainda não sabia muito bem o que faria por estas paradas. Só tinha com ele algumas peças que havia confeccionado para trazer de presente e algumas receitas para quando a saudades apertasse. Encontrou seus irmãos assim que chegou na cidade. Já eram três da tarde, e todos ainda estavam sentados em volta da mesa, comendo halawet al-jubn d

Até Hoje

Eram mais ou menos cinco da manhã quando ela começou a melhorar. Eu não melhorei até hoje. Falávamos da vida, dos acasos, dos desastres, aquelas coisas de gente bêbada e imatura, que está se conhecendo e quer impressionar. Ela falava mais do que eu, como manda a etiqueta da conquista, até desmaiar, quando comecei a falar mais do que ela.Continua assim até hoje. Propus sairmos daquela confusão, que não estava nos fazendo bem. Eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio. Não consigo lembrar o que aconteceu em seguida. Foram pelo menos umas seis horas de blackout. Ela diz que não transamos, mas eu tenho minhas dúvidas até hoje. Quando acordei não lembrava o seu nome e a chamei de minha princesa. Assim a chamo até hoje. Não sou muito de mudanças, se percebe. Fiquei obcecado por ela, por sua beleza estranha, seu jeito próprio de falar, como se as palavras não fossem ficar para sempre, e com seu cheiro de banho de antigame

Da gestação à digestão

Nunca vou esquecer do carneiro do Zeco. Quando meu irmão ainda era estudante de medicina e morávamos juntos em um pequeno apartamento na Desembargador Motta, eu acompanhava os estudos dele e de seus colegas madrugada adentro. Como prêmio de participação, eles me convidavam para os churrascos da turma. Ao contrário da maioria dos churrascos de turmas de universidade, os da turma do meu irmão não eram uma desculpa para beber, quer dizer, não só para beber. O ponto alto era quando tinha o carneiro do Zeco. Não era qualquer carneiro. Segundo o próprio Zeco, um garoto do interior do Paraná, que tinha vindo para estudar em Curitiba, como a maioria dos garotos do interior do Paraná com algum dinheiro, ele acompanhava a vida do carneiro da gestação à digestão. Conhecia os bichinhos pelo nome, sabia quem era o pai, quem era a mãe e quem eram os irmãos, geralmente os próximos da fila. Ele fazia questão de sacrificá-los com as próprias mãos. Achava que era uma questão de respeito. Limpava, cortav

Carta de Apresentação - Modelo Calheiros

Prezados senhores, sou engenheiro de formação e tenho muita experiência na indústria. Por favor encontrem em anexo o meu CV para qualquer vaga que vocês tenham disponível em sua empresa. Qualquer uma mesmo, não se acanhe. Não falo inglês, nem qualquer outra língua estrangeira, mas tenho certeza que posso aprender rapidamente. A questão é que eu tenho que sair daqui o quanto antes. Não dá mais. É sério, vocês que moram aí não têm como saber. E olha que eu sou patriota de cantar até o hino da bandeira, mas agora já deu. Minha empresa é ótima, meu salário é até muito bom, mas não faz diferença pois roubam um terço dele. Meu cargo é de liderança, mas eu posso abrir mão disto. O que quero é cair fora. Imediatamente. Por favor, não achem que eu sou maluco. Quer dizer, a responsabilidade é sua, se não me tirarem daqui eu vou acabar ficando. Não sou do tipo que desiste fácil, pois sou um dos últimos otimistas por aqui, mas até o mais otimista tem seus limites, que geralmente coincidem com o da

Pistou

No auge da neurose com a vaca louca, fomos, eu e minha esposa, à França. Na época ainda namorávamos e eu queria impressioná-la com uma aliança de noivado em um passeio pelo Sena. Como tínhamos amigos em Toulon, resolvemos passar uns dias no sul antes da semana em Paris. Não comer carne de gado na França só não é mais grave porque existem os patos, as rãs, as lesmas e outros bichos tão ou mais apetitosos. De qualquer maneira, perde-se muito. Por sorte eramos muito novos na época, e ainda não sabíamos direito o que estávamos perdendo. O maior exemplo é que raramente tomávamos vinho nas refeições, substituindo uma boa garrafa de borgonha de quinze dólares por uma boa garrafa de coca-cola de dez. Falta de experiência à parte, quando acertávamos era em cheio. Em um dos poucos dias chuvosos da viagem, passeando por Grasse, famosa pelos perfumes e por ser cenário do famoso livro de Patrick Suskind, quando não aguentávamos mais de fome entramos em um restaurante. Tinha uma plaquinha na porta,

Goldship

O senhor Goldship viajava. Ninguém entendia o que ele dizia, nem nas rodas sociais, nem em sala de aula e ainda assim ele era muito respeitado. Às vezes as pessoas ganham respeito falando o que os outros não entendem, mesmo que seja uma tremenda bobagem. Na universidade local, dava aula de eletrônica, mais especificamente de semicondutores, sendo sua especialidade a modelagem completa de circuitos com transistores. É eu sei, o que isto importa? Por enquanto não muito, mas é bom saber com quem estamos lidando. O senhor Goldship não era casado, não tinha filhos nem irmãos, e os pais já tinham ido. Era baixo, redondo e tinha uma cara vermelha, sempre bem barbeada. Andava com dificuldade, um pouco pela idade, um pouco por um acidente de carro que sofrera anos antes. Ele implicava com leiloeiros, apreciava mais os falsários, políticos ou até mesmo assassinos. O que explica esta estranha predileção é que logo após ele nascer sua mãe havia fugido com o leiloeiro mais famoso da cidade, deixand

Todas as minorias

Com o tempo ela aprendeu que a melhor maneira de sentir que passava mais tempo em casa era deixar para arrumar a mala na útima hora. Era exatamente o que estava fazendo quando começou a pensar em sua condição. Havia passado sua infância e adolescência no Alabama das décadas de 60 e 70. Seu pai era reverendo de uma igreja presbiteriana e sua mãe professora de música. Desde cedo a ensinaram a enfrentar com classe os problemas da discriminação racial, o que não significa que sua vida tenha sido fácil. Não podia andar em determinadas ruas, nem frequentar a maioria dos estabelecimentos comerciais do centro de sua cidade. Apenas as chamadas “colored facilities” podiam ser frequentadas por afro-americanos naquele tempo, e seus pais a proibiam de se rebaixar às normas da época. Cursar um bom colégio, fazer aulas de música e ter acesso à cultura era privilégio de poucos. Foi tão longe em suas memórias que acabou exagerando na mala. Era uma viagem de ida-e-volta, não precisaria de tanta coisa. F

As semanas, os meses, os anos

Olhei para o lado e a vi, linda demais, cabelos castanhos largados rente ao rosto pequeno, liso e claro à perfeição. Fazia muito tempo que não a via, desde os tempos de escola. Na verdade acho que nunca a tinha visto, não daquela maneira. Não tinha mais volta. Por muito tempo olhei, como é de meu costume. Olhei com desespero até, pois sabia que não iria ser fácil vencer minhas barreiras. Por pouco não a perdi, até que um dia, com alguma ajuda, fui. Neste dia ela estava ainda mais linda, o que me assustava ainda mais. Conversamos o pouco que dava, já estava tarde, sempre fui de fim de festa, mais uma armadilha da minha timidez. A coisa foi indo, devagar mas com consistência. Primeiro beijo em uma semana, me chame de antiquado se quiser. Como eu corri riscos nesta história. Não sei como ela teve tanta paciência. Depois do primeiro beijo comecei a achar que tinha uma pequena chance, vê se pode. A esta altura ela já estava completamente a vontade, comigo e com todos, e eu lá, ainda em dúvi

Osaka e o trem bala

O gongo bateu na lateral da locomotiva e nenhum passageiro arriscou um piu. Estavam todos excitados e apreensivos ao mesmo tempo. Todos tinham na cabeça apenas as palavras dangan ressha, o trem bala. Tóquio não estava em seus melhores dias, o céu nublado e o ar pesado indicavam chuva, o que aumentava a apreensão. Dentre alguns convidados para o passeio inaugural estava o senhor Osaka, acompanhado de sua esposa Yasu. Ao contrário dos outros passageiros, senhor Osaka não estava apreensivo com a viagem, estava de saco cheio com mais este compromisso político. Faltavam apenas dez dias para a abertura das olimpíadas e ele, um dos principais organizadores do evento, ainda tinha muito trabalho pela frente. Estamos no dia primeiro de outubro de 1964, dia do aniversário de Yasu. Ela não quis nenhum presente, não quis jantar fora, seu único pedido foi que seu marido aceitasse o convite para a inauguração. Ele nunca deixaria de atender a um pedido de Yasu, que era calma só no nome, e dava um bail

Prazeres Imeditatos

Uma vez, eu e minha esposa levamos um casal de amigos franceses a uma churrascaria. Eu achei que iríamos abafar, mas o efeito foi o contrário. Eles não entendiam como é uma refeição poderia ser feita daquela maneira. Tudo muito rápido, tudo muito intrusivo. Garçons interrompendo a conversa com um espeto de corações de galinha abruptamente posicionados entre o casal, pessoas circulando que nem loucas pelo bufê, e assim por diante. Para nós, a coisa mais natural. Para os franceses, o caos. Chegou a ponto de eles puxarem papo com um garçom para ver se a coisa acalmava um pouco. Quando vimos, tinha uma tropa de garçons sentados na nossa mesa aprendendo a falar “calma” em francês. Coisa muito parecida aconteceu quando os levamos almoçar em um restaurante com bufê por quilo. Enquanto todo mundo fazia o prato completo, com salada, quentes, queijos e sobremesa, eles tentavam simular uma refeição de quatro cursos. A moça da balança achou que era piada. Quis saber se eles não tinham mais o que f

Home, home again!

Por muitos anos achei que ver o Pink Floyd sem o Roger Waters, ou o Roger Waters sem o Pink Floyd seria uma perda de tempo. Perda de tempo é ser tapado como uma mula, como eu fui na primeira vez que ele veio ao Brasil. Um fã do Floyd como eu não pode se dar ao luxo de desdenhar das migalhas que a lendária banda eventualmente deixa cair aqui no hemisfério sul. O que eu estava esperando, uma reunião improvável da banda, com apresentação no Brasil? Tenha dó! Em 2002, quando o velho Waters se apresentou pela primeira vez por aqui, fiz cara de quem não estava nem aí e perdi o show. Desta vez não! Com organização impecável, o show no estádio do Morumbi começou pontualmente às nove horas da noite. O céu completamente estrelado e a lua crescente anunciavam a grande atração da noite, a execução completa do clássico álbum Dark Side of the Moon, de 73. Minha querida estava comigo, o que tornou o momento ainda mais especial. Ela nunca deu a mínima para as músicas do Pink Floyd e do Roger Waters, e

Os primeiros ares de abril *

Ah Deus, eles chegaram! Os primeiros ares de abril O sol latejante, o vento já frio Que efeito eles têm Os primeiros ares de abril Não parece tristeza, não parece verdade Os prédios crescem sobre a cidade Fico oprimido, fico vazio quando eles chegam Os primeiros ares de abril * tradução livre do original em inglês

O Impostor

Minha família é um resumo bem humorado do mundo das artes. Tenho tio escultor, pintor, chef de cousine, arquiteto e comediante. Alguns profissionais, outros amadores, mas todos com grandes feitos. Tio Joaquim, por exemplo, um puta artista plástico. Nunca vou esquecer a pilha de latas de cerveja que ele fez no verão de 87 em Camboriú. Entrou para a história com seus 27 andares de “Antarcticas” de ferro tentando se equilibrar debaixo daquele sol absurdo de janeiro. Na época em que só janeiro tinha sóis absurdos. Tem também a tia Amélia, grande arquiteta. Aprontamos várias juntos, pois ela tem quase a minha idade, ou eu tenho quase a idade dela, já que ela chegou primeiro. Já fugimos de casa, já roubamos o carro de meu pai para passear, já fizemos de tudo. Era sempre ela quem arquitetava. Ah que saudades da tia Amélia, aquilo é que era arquiteta de verdade. E a lista só vai crescendo. Tio Jonas, com sua original imitação de Silvio Santos, um rei das artes cênicas. Tia Juliana e sua famosa

Bob e Woody

Refletir com profundidade requer ficar com dúvidas por mais tempo do que a maioria das pessoas pode suportar. Talvez por ser uma dessas pessoas de pavio cerebral curto ou talvez por ter nascido tarde demais, alguns ídolos da crítica cultural mundial nunca me convenceram. Não consigo entender, por exemplo, onde está a genialidade de Woody Allen. Fazer sempre o mesmo papel de nova-iorquino neurótico não é necessariamente um grande feito. Mesmo porque, faz muito tempo que ser neurótico deixou de ser exclusividade de nova-iorquinos. Também não entendo que, em pleno ano de dois mil e seis, o disco novo do Bob Dylan tenha recebido da crítica vários prêmios como um dos melhores do ano. Acho que eu perdi alguma coisa. Não estou dizendo que Dylan não tem seu valor. Quem sou eu! Mas já deu, né? O disco é chato, aquela voz fanhosa já perdeu o charme faz tempo, e o tempo agora é de gente nova. Deixa o Bob fazendo seus discos para os fãs do Bob, mas não precisa confundir a cabeça da criançada que a

Todo mundo escutou

Depois do ding-dong, surge a voz metálica nos alto-falantes do aeroporto: - A infraero informa! Senhores passageiros com qualquer destino: - Os vôos estão atrasados, você já viu na TV, então não reclame! - Colocaremos toda a culpa nas companhias aéreas, mas não acharão ninguém das mesmas por perto. - Como medida de contenção, a cada seis horas de atraso mandaremos um representante magrinho e sem nenhuma informação ao seu portão de embarque. Pode bater para descarregar a raiva. - Informamos também que em breve todas as lanchonetes serão fechadas, e todos ficarão sem água. - Adicionalmente informamos que os banheiros estão imundos e o pessoal da limpeza já se mandou. Segura mais um pouquinho e deixa para fazer no avião. Quem avisa amigo é. - A mãe não! Não mete a mãe no meio! A mesma voz metálica, poucos segundos depois, em algum idioma parecido com o inglês, aqui corrigido para melhor entendimento: - Dear passengers: - Please come back home. What the f… are you doing here anyways. This