Seu Dudu e Seu Cominho foram figuras que fizeram parte da minha infância, e da minha adolescência em parte. Um era do dia, outro da noite. Ambos capitaneavam, em seus respectivos turnos, a portaria do Edifício Paraíso, onde passei todos os Janeiros ou Fevereiros daquele período, dependendo da escala familiar para utilização do apartamento da praia. Seu Dudu andava arrastando a perna, que tinha uma ferida sempre grande e exposta, como se fosse uma vítima de guerra. Diziam que era uma queimadura grave, sofrida em um acidente de trabalho, mas ninguém tinha certeza. Sempre que ligavam para a portaria ele saudava com fala ensaiada e, por todos os anos que consigo me lembrar, idêntica. Seu Cominho era menos formal, tinha cara de desconfiado e um sorrisinho malicioso de canto de boca. Parecia gostar de todos nós pirralhos, mas dava a impressão que estava sempre a ponto de perder a paciência. De qualquer forma, nossa turma era grande o suficiente para deixarmos os porteiros em paz. Aliás, porteiros de praia, ao contrário daqueles dos edifícios da cidade, têm esta vantagem, as crianças estão sempre ocupadas com outras coisas mais interessante do que encher o saco dos pobres.
Na maior parte das vezes, o único trabalho que tinham conosco era o de apartar as brigas que dividiam a turma, sempre em duas facções. O negócio era cíclico. A cada temporada os lados que se opunham eram compostos de pessoas diferentes, sendo a somatória sempre a mesma, a turma original. Em várias temporadas as divisões se reagrupavam ainda no final de Janeiro e se dividiam novamente, com outra configuração lá por meio de Fevereiro, deixando a solução definitiva adiada para o ano seguinte.
É claro que se dependesse de mim passaria os dois meses na praia, mas como isso não era possível, preferia quando íamos em Janeiro. O pessoal de Janeiro era o que criava as histórias, os de Fevereiro passavam os primeiros dias entendendo o contexto e o resto das férias batalhando para conseguir um papel no enredo. Quando íamos em Fevereiro os namoricos já estavam definidos, a divisão da turma já estabelecida e os escândalos em andamento. Ou você chegava com uma história acachapante, ou não era ninguém.
Eu tinha uma vantagem enorme neste contexto. Na maioria das vezes em que Fevereiro era destinado à minha mãe, eu e meus dois irmãos, meu primo já estava lá e tínhamos pelo menos uma semana de sobreposição para que a transição fosse feita e a adaptação se tornasse mais suave.
Com o tempo os interesses foram mudando, a turma ficou mais unida, e ao invés de brigarmos, começamos a namorar, o que, diga-se de passagem, revelou-se bem mais interessante. Apesar da amizade sólida, ou talvez por causa dela, alguns relacionamentos intra-turma se estabeleceram. Mas foram poucos. O negócio dos meninos era arranjar alguém para “ficar”, como se dizia antigamente, e infernizar a vida dos caras que queriam o mesmo com nossas meninas. Porque na nossa cabeça elas eram como irmãs, e não era qualquer um que podia chegar perto. Elas, claro está, tentavam fazer o mesmo, porém através de meios muito menos diretos e mais intrincados do que os nossos.
Foi nessa época que o Seu Dudu, sendo o dono da noite, teve mais trabalho do que o Seu Cominho. No turno deste segundo estávamos dormindo, ou curtindo a ressaca na praia, enquanto que no de Seu Dudu, estávamos a toda. O velho Dudu só fazia rir cada vez que um de nós chegava tarde da noite, com a cabeça cheia de Capeta, uma bebida estupidamente forte que mistura coisas que nem me atrevo a lembrar. Várias vezes ele nos via dormir no sofá da portaria, tendo o trabalho e a bondade de nos acordar antes que nossos pais entrassem em desespero em algum dos 24 andares do Edifício Paraíso.
Faltam talvez poucos anos para que as crianças e adolescentes comecem a me chamar de Seu. Só espero que eu mereça o mesmo respeito de ser lembrado, como os velhos capitães da portaria dos meus verões na praia.
Comentários
ótimo texto.
Zé Rodrigo