Pular para o conteúdo principal

Affection

Apesar de os grandes amigos sempre merecerem nossas homenagens, este texto não se presta propriamente a isto. Quero aqui fazer apenas um justo e tardio reconhecimento ao grande letrista que é este amigo em questão. Conhecemos-nos há uns 15 anos, quando estávamos no segundo grau e o interesse comum pelo rock'n'roll nos levou a uma amizade que dura até hoje. No meio deste tempo, nos primeiros anos da faculdade, não aguentamos nem 15 minutos de um jogo chatíssimo de RPG que uns amigos estavam promovendo, quando resolvemos ir até uma locadora de CDs que tinha aqui em Curitiba. Meu amigo havia recebido umas recomendações de uma banda chamada Bad Religion, que valia a pena escutar. Até então, o rock mais barulhento e rápido que eu suportava era o das novas bandas de Seattle, que estavam surgindo naquela época. Ele também estava mais para Iron Maiden do que para uma banda de hardcore da Califórnia. Mesmo assim, pegamos os dois CDs mais recentes de Greg Graffin, Mr. Brett e companhia e voltamos para o apartamento com o intuito de conhecer a banda e infernizar a vida da rapaziada que continuava insistindo naquele jogo insuportável.

Foi fanatismo à primeira audição. Tanta melodia em cima de uma evolução lenta de poucos acordes de guitarra, sobre uma base velocíssima de bateria e baixo, era uma coisa à qual não estávamos acostumados. Não entendemos nada, mas nos deixou com uma baita pulga atrás da orelha. Com as repetidas audições, um bônus, letras inteligentíssimas e bem encaixadas nas melodias. Acho que foi neste momento que decidimos no nosso inconsciente que queríamos ter nossa própria banda. É claro que tinha um pequeno problema. Quase desprezível. Não sabíamos tocar nenhum instrumento que se valesse ao punk rock. Eu havia estudado piano quando criança, mas não servia de nada, mesmo porque eu não lembrava muito, e piano em punk rock é a mesma coisa que calda de chocolate em cima de um bom pedaço de picanha.

Poucos anos depois (ou quem sabe apenas meses, não consigo lembrar), após algumas tentativas de banda, e depois de ter aprendido os acordes básicos de violão com meu irmão, apareci na casa do meu amigo com uma música pronta. Música e letra, diga-se de passagem. Apesar da letra sofrível, a música até que era legal. Àquela altura meu amigo já havia se revelado como vocalista de uma banda de covers e decidimos gravar aquela que seria a primeira de uma série de músicas que escreveríamos em parceria. Violão com captador ligado a um amplificador Marshall que eu tinha ajudado meu irmão a comprar, microfone ligado no toca fitas para captar a voz e o barulho do violão distorcido e estava armado o primeiro estúdio de gravação que enfrentaríamos ao longo dos quase 10 anos em que ficamos à frente da banda. Estas gravações existem, mas eu garanto, você não quer escutá-las.

Em todo este tempo fizemos várias músicas juntos. Para algumas, como eu compunha a melodia em casa sozinho, acabava trazendo a letra pronta. Para outras, mostrava a música para meu amigo, que geralmente fazia a letra na hora, ou encaixava alguma letra que já tinha aprontado. Era nesses momentos que o melhor surgia, e é aqui que finalmente quero fazer meu reconhecimento. Apesar de termos sempre escrito em inglês, pois nossa língua natal é ingrata para quem não tem o dom da poesia embutido, meu amigo conseguiu escrever letras que colocam no chinelo qualquer bobagem das que se escuta nas FMs do país.

Ontem, depois de muito tempo, passeando com minha esposa de carro pela cidade, resolvemos escutar um dos discos que gravamos com a banda. A certa altura começou a tocar uma daquelas músicas que escrevemos juntos, sobre um amigo nosso que havia se suicidado há muitos anos, quando veio a frase, "can't you feel the chill that's in the room, we were allways there for you, in a way you couldn't see. Just like the new paths for your life, the pessimism and tears were only in your mind." A tradução do nome da música era "Você realmente tinha que ir?" Não consigo pensar em maior homenagem a um amigo que tinha decidido deixar a vida para outra hora. As letras não eram somente sobre o desespero de viver, tinha algumas bobagens também, de significado muito íntimo como "Hangover in PG", que fala sobre um dia de ressaca após uma saída com os amigos na nossa cidade natal. Uma bobagem de muito significado, pois foi nessas saídas que resolvemos muito de nossos problemas. Uma espécie de terapia coletiva, onde substituíamos o psicólogo por um garrafão de 5 litros de vinho Campo Largo, um clássico. Existiam também as letras políticas, de revolta contra o sistema, típicas de universitários, mas perceba a classe, "Aren't your hands full yet? The harder we try, the harder we fail. Nature runs its own path. Solutions won't arrive in your mail". Genial! E assim vai. Tinha letras sobre relacionamentos, amizade, atos de atentado ao pudor em estradas escuras, e assim por diante.

Não tenho como não terminar este sincero texto com mais uma citação. É a letra de uma de nossas melhores e mais conhecidas músicas, que exprime o tipo de amizade que conseguimos criar no nosso pequeno grupo, que desde a adolescência se importava muito mais com o conteúdo do que com a forma. "The whole pain of the world has hit me now. Our envy of success, the foolish quest for no love sex. All the drugs and drinks that unable us to think. Affection is something missed these days. Affection, oh oh oh, affection!!!"

Comentários

Anônimo disse…
Bons tempos aqueles...Começo de namoro e ingresso na turma que seriam nossos melhores amigos para sempre...
Apesar de não gostar tanto assim da hora do ensaio (óbvio para uma namorada!), os shows, em compensação, eram sempre pura diversão!

Postagens mais visitadas deste blog

História de fim de dia

O pai chegou em casa cedo naquele dia. O pequeno estava na sala, com alguns amigos que tinham vindo com ele do colégio para brincar de videogame. A mais velha estava no quarto, com alguns amigos que não tinham vindo com ela do colégio, batendo papos virtuais. A mãe estava no banho. O cachorro em todos os lugares. Chovia lá fora. Como as crianças já estavam cansando de matar monstros e fazer curvas impossíveis, o pai resolveu contar uma história. Atividade antiquada essa de contar histórias, com a TV desligada, onde já se viu. Mas não demorou muito para o pequeno e seus pequenos colegas vidrarem seus pequenos olhos no pai, mal respirando. Era sobre um ser que viveu aqui por essas paradas, há muito tempo. Um ser verdadeiramente iluminado. Apesar de não ser humano, era amigo de todos. Cada vez que ele aparecia para uma visita, nem que fosse breve, todos se alegravam. Ele inspirava planos, sonhos, música. Enquanto o pai contava, a filha mais velha se juntou à gangue. Ouviu o silêncio

O ensaio acabou

O ensaio acabou. Eles estavam exaustos. O ventilador de mesa nunca dava conta de mantê-los sãos nos dias de verão. Nos intervalos, cigarros e tererês, enquanto o guitarrista brincava na bateria (amor antigo para o qual nunca se entregou, mas continuava paquerando). A casa era de madeira, do baterista obviamente. No quarto ao lado, dormia a recém-nascida. Em poucos dias gravariam o primeiro CD, na época em que gravar CDs era um grande feito. As músicas estavam no ponto, ou pelo menos era o que achavam até entrarem no estúdio. O estúdio também não tinha ar condicionado, a não ser na sala de gravação. Estavam todos ansiosos. Foram dois dias só para ajustar e gravar a bateria (só o guitarrista teve saco de acompanhar todo o processo). Duas semanas no total para finalizar a obra. Depois de muitos cigarros, cervejas, erros e stress, a bolachinha ficou pronta. A pior parte foi a mixagem. A pior parte é sempre a mixagem. É quando você tenta arrumar o que não tem conserto.

Sem Planos

Esses carros modernos, pensou Marta, são tão estáveis e silenciosos que você passa dos cento e quarenta sem nem sentir. Ela estava dirigindo para visitar seu filho na faculdade em Florianópolis. João Lucas fazia engenharia mecânica, estava no segundo período e ainda tinha na cabeça o vácuo corriqueiro que se forma em calouros: entre esvaziar o cérebro dos decorebas inúteis necessários para passar no vestibular e enchê-lo novamente com cálculos, fórmulas, gráficos e tabelas, um pouco menos inúteis, que a engenharia exige. Três horas e meia de estrada para encher a geladeira do ingrato, que dará um aceno blasé quando ela chegar de viagem e entrar no minúsculo apartamento que ele divide com outros dois cabeças-oca. Marta olhou para a tela do seu BYD. Faltavam apenas oitenta quilômetros para chegar, mas as notícias não eram nada animadoras: trinta quilômetros de engarrafamento à frente. Segundo o aplicativo de GPS, a causa seria um acidente grave que estaria bloqueando a estrada. Preparou-