Pular para o conteúdo principal

Despertadores

Eu não sou exatamente um cara místico, que acredita muito em que tudo acontece por um motivo e tal. Ou pelo menos não era até ter meu filho e começar a me aproximar da meia idade. Agora, de verdade, meu velho ter perdido a hora no meu primeiro dia de aula em um novo colégio sempre fez meu ceticismo cair de joelhos, por assim dizer.

Explico. Meu velho nunca perde a hora. Pelo contrário, a hora é que perde ele. Sempre agitado, ligadão, a mil por hora, quais eram as chances dele dormir demais no primeiro dia de aula de dois dos seus três filhos no colégio novo? Bom, alguma chance deveria ter, pois foi o que aconteceu. E esse pequeno deslize foi o que salvou a minha vida, sem exageros.

Como cheguei atrasado, as carteiras próximas aos meus colegas do antigo colégio já estavam todas tomadas. Sobrou um lugar do outro lado da sala de aula, bem no meio de três figuras lendárias da cidade. Para um piá de prédio, patologicamente tímido, vindo de um colégio de filhinhos de papai, sentar no meio daqueles caras era a pior coisa que poderia acontecer. Ou melhor dizendo, tinha uma coisa pior. Quando o professor fechou a porta e iniciou as apresentações, sua primeira atitude foi “congelar” os lugares. Isso significa que eu ficaria sentado ali, no meio dos três bandidos, o ano todo. Fodeu.

A aula começou, um dos três puxou papo, os outros foram se apresentando e, no final das contas, os bandidos não eram assim tão sanguinários. Isso foi há quase 22 anos, e no resumo do resumo, foi com esse povo que matei a primeira aula, bebi o primeiro garrafão de vinho Campo Largo, aprendi a tocar violão, fui à minha primeira festa cool (na Rua Lopes Trovão, nunca vou esquecer o endereço), tive minha primeira discussão existencial profunda, descobri que rock era mais do que Pink Floyd e Engenheiros do Hawaii, levei a primeira batida da polícia, fiz minha primeira música, gravamos nosso primeiro CD e assim por diante. São meus melhores amigos até hoje.

Nesses 22 anos, aconteceu de tudo. Ficamos velhos, pelo menos se comparados ao dia em que meu velho perdeu a hora. Alguns casaram, outros ainda não. Alguns tiveram filhos, outros ainda não. Todos se formaram em alguma coisa. Tivemos brigas sérias que acabaram nos afastando um pouco, mais uns do que outros, mas o sentimento de que ali tinha algo de especial continua forte em todos nós. O mais legal é que não existem tentativas patéticas de reviver o que já se foi (apesar da vontade ser grande em alguns momentos).

Tinha decidido nunca escrever esta história, por mais resumida que fosse, por pelo menos dois motivos. Um, ela só interessa a mim e a todos os que a vivenciaram. Dois, ela é sentimental demais, e por melhor que eu a escrevesse nunca refletiria o que ela significou de verdade na vida de todos nós. O problema é que ontem mais um de nós casou, com uma das nossas, e a festa estava muito alto astral, e fizeram um vídeo da história deles, que é quase a nossa história, e mais do que isso, todos estavam lá. TODOS.

Eu passei a festa toda com meu pequeno no colo, super manhoso porque estava estranhando aquele povaréu, e não consegui evitar o pensamento de que talvez eu esteja criando um piá de prédio tímido como eu era antes de conhecer aquela gente. Acho que não, ele é apenas um neném de pouco mais de ano e meio, mas se um dia eu perceber que esse é o caso, abolirei em um decreto irrevogável todos os despertadores da casa.

Comentários

Acras disse…
Apesar de já ter falado isso mais de 10 vezes. Essa é top 10, com certeza.
Unknown disse…
Boa Digo....
BONSSS TEMPOSSS....
Fabian Oliveira disse…
Porra, Digones, fantástico txt.
Anônimo disse…
Mto bom o seu texto, eu não estavalá, mas me emocionei...
flaviomottin disse…
Estou em casa, tomando uma xícara de café para acordar devidamente e me organizar para daqui há pouco descer p/ Floripa e curtir um show de uma banda gringa dos velhos tempos, YES! E quando acesso um link da net e leio este extraordinário texto, toda emoção vem à tona, pois todas a palavras aqui enriquecem ainda mais os fatos, pois eu também estava lá! Aliás, eu sou um de nós que casou ontem, na verdade no dia 14/11!
Digo, OBRIGADO!!
Flávio Moska
Unknown disse…
É Digones, esses sentimentos e lembranças é que dão valor a vida!
Jóia o texto! muito bom parar e pensar o quanto os velhos tempos foram importantes para nos tornar o que cada um de nós é hoje!
E o Matt, e os outros pequeninos terão um pouco disso tudo.
abração
Viviane Souza disse…
Show...me vi revivendo coisas com meus amigos e só quem tem bons e verdadeiros amigos sabe o quanto tudo isso significa. Lindo texto.
Anônimo disse…
Caracas, poderia o destino me reservar uma turma melhor que essa?
Ainda bem que esse despertador não funcionou, porque de quebra pude conhecer a Taty, que é uma mini-mega-amiga,rs.
Beijo grande da Mi, aquela que estava vestida de noiva naquele casamento,rs.
rafacras disse…
Excelente, Digo!
Muito bom!
Maria Ercilia disse…
Ótimo texto Digo!

Postagens mais visitadas deste blog

Seagazer

Como ser humano assumida e eternamente perplexo com a grandeza e as maravilhas do oceano, sempre percebo quando estou diante de um semelhante. Nós, os Seagazers , somos facilmente reconhecíveis. É só prestar atenção aos braços largados ao lado do corpo (ou as mãos dadas atrás das costas, uma variação que, à exceção do físico prejudicado e do fato de não usarmos sungas vermelhas, pode faze-lo nos confundir com salva-vidas prontos para a ação), ao olhar fixo no horizonte oceânico, às pernas um pouco espaçadas e a uma leve inclinação a sair nadando até desaparecer. No meu caso específico – pois não sou um porta-voz da nossa espécie, ou algo do tipo – se tiver um par de fones brancos no ouvido, com, por exemplo, Stargazer (um tipo mais conhecido mas não menos esquisito de Gazer ) do Mother Love Bone tocando, ainda melhor. Pode ser também a Oceans do Pearl Jam . Hoje, curtindo o último dia de férias na praia, descobri um novo membro do nosso seleto grupo de lunáticos. Meu filho. Ele te...

O nome do longo hiato

Tenho agora algo em torno de doze leitores assíduos. É demais para a minha cabeça. Esse negócio está fugindo do controle. Antes eram apenas minha doce esposa, minha sogra, meu pai e meu irmão mais novo. Estava tudo sob controle. Agora que tem outros oito, me sinto na obrigação de justificar o longo hiato entre o último texto e este, e entre este e os próximos, que provavelmente será tão longo quanto. A justificativa tem seis meses, nove quilos, o primeiro dente e responde por filhão ou gorducho, só que deste último ele não gosta muito. Falando nele, vai aí uma dica de veterano para aqueles que tem filhos de cinco, quatro, três, dois ou um mês, mais conhecidos como calouros. Tudo o que te disseram sobre os nenéns - perceba, eu não disse quase tudo, ou muito do que, ou a maioria, eu disse TUDO - é mentira ou não se aplicará ao seu. Só para dar um exemplo, um colega de trabalho me disse categoricamente que as cólicas, quando existem, acabam como que num passe de mágica no exato momento ...