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Mostrando postagens de 2011

Plaquinha Vermelha

O Josimar é um sujeito patologicamente bem educado. Só para citar um exemplo dos problemas práticos que o excesso de educação traziam para o Josimar, ele não conseguia, em hipótese alguma, ir a um churrascaria de rodízio. Com aquela loucura de espetos e bandejas, Josimar tinha que dizer “não obrigado” sempre que quisesse dispensar algum pedaço de boi que estivessem servindo, ou “sim, por favor” quando aceitasse. O problema é que sua doença não permitia que ele falasse de boca cheia e o negócio travava. Chegou a um ponto em que ele inventava desculpas do tipo “já almocei” ou “hoje estou meio sem fome” para não passar vergonha. Já estava sem esperanças quando um primo, mais do que letrado em rodízios, deu uma sugestão. Bastava que ele, assim que aceitasse a primeira fatia de picanha, virasse a plaquinha para o lado vermelho. Quando terminasse de comer, com toda a calma e etiqueta típicas do Josimar, virava novamente no verde, e assim sua vida estava salva da iminente falta de p

O Vírus

Ela tem um rosto fronteiriço. Daqueles que você só sabe se é bonito ou feio quando ela abre a boca. A maioria das pessoas são bonitas ou feias, ponto. Você pode até mudar de idéia quando conhece melhor, mas já classifica de cara. Porém, algumas raras pessoas ficam ali, bem no meio, e você só desempata quando ela começa a falar. E ela começou a falar. E ela é linda de morrer. E foi aí que eu dancei. Foi como um vírus incubado. Por semanas eu não me lembrei dela, mas aos poucos comecei a sentir que algo me incomodava. Seu rosto aparecia na minha imaginação e eu achava graça. Depois comecei a me preocupar com a frequência e, finalmente, veio a febre. Eu tinha que fazer alguma coisa, urgente. O nó é que pra vírus não tem remédio, tem que esperar o ciclo passar, mas eu precisava pelo menos de um antitérmico. Comprei uma passagem de ônibus. Naqueles tempos, quando aeroporto ainda não parecia rodoviária, só gente rica viajava de avião. Arrumei minha mala com todos os argumentos que

Malditas fotografias

Tenho uma coleção de fotografias. Bom, todo mundo tem uma coleção de fotografias, mas não como a minha. Não é uma coleção enorme, não tem bizarrices, não é de Polaroid, é apenas uma coleção de fotografias, mas é única. Mesmo quando a coleção entrou na era digital, continuei mandando imprimir. Tenho exatamente vinte mil setecentas e cinqüenta e duas fotografias, uma para cada dia, desde o dia em que fiz dezoito anos. Eu achava que estava ficando velho quando fiz dezoito anos. Isso me assusta agora que estou realmente ficando velho. Nunca mostrei minha coleção para ninguém, e nunca vou mostrar. Isso é uma das coisas que faz da minha coleção única. Eu também não vejo as fotografias depois que as guardo. A foto de amanhã já planejei, a de hoje já fiz, a de ontem revelei e as da semana passada já esqueci. São todas iguais, o que muda é o tempo. São todas diferentes. Ao contrário de Dorian Gray, envelheço junto com os retratos, ou até mais do que eles, porque eles só registram o envelhecime

Sapo

Toda vez que eu chego em casa do trabalho, meu pequeno me olha e diz, “Sapo”. No começo fiquei grilado. Tudo bem que sou feio e ganhei um pouco de peso ultimamente, mas eu não sou verde porra. Além disso, tenta colocar esse nariz num sapo para ver se o desgraçado consegue se equilibrar. Mas está tudo certo, na verdade o que ele quer é o vídeo do sapo que não lava o pé (aquele mesmo do nosso tempo de infância) que começa a tocar no meu ipad toda vez que o pequeno o liga. É isso, meu ipad não me pertence mais. Foi bom enquanto durou. Agora ele é apenas uma plataforma avançada de entretenimento infantil. Sempre alternando entre o sapo, o Doki, a Galinha Pintadinha e um povo esquisito contando até 10 em francês. Deixe-me esclarecer bem a situação. Minha TV já é dele desde o dia 1. Minha cama também. Minha esposa nem se fala. O chão da sala, o sofá da sala, a sala. Tudo dele. Sem problema algum, filho é filho, mas o ipad era meu, katzo. Eu comprei com o meu dinheiro, eu vi primeiro e eu

Tutano

Sempre que uma grande mudança ocorre na minha vida, anuncio por aqui que vou dar um tempo nos meus escritos. Quando mudei de emprego a primeira vez foi assim. Quando o pequeno nasceu foi assim. Quando decidi que não gostava mais de quiabo foi assim também. Grandes mudanças implicam em vácuos criativos para mim. Dois dos meus quatro seguidores sempre reclamam quando faço estes anúncios. Para não criar nenhum mal estar, apesar de ter mudado de emprego recentemente, decidi não fazer o anúncio. O problema é que as ideias continuam não vindo. Foi aí que eu percebi que todas as vezes que disse que ia parar de escrever por um tempo, logo em seguida surgiam vários textos novos. Se for assim, queridos leitores, anuncio que nunca mais vou escrever, na esperança desesperada de que a partir de amanhã comecem a pipocar histórias nesta pobre cabeça sem ideias. Como diz o meu pequeno, colocando o dedo na minha testa, “Tutano papai”.

Trilha

Liguei o modo aleatório do aparelhinho, coloquei os fones no ouvido e saí andar pela Lagoa. De cara tocou Creep do Radiohead para me colocar no meu devido lugar. Fui pensando que se eu voltasse para casa teria que encarar a dura realidade dos livros não lidos, da louça não lavada e da noite mal dormida em má companhia. Não voltei. Maldito sol. O que será que houve com a fama de cidade cinza deste lugar?   Não levei meus óculos. Nem sei onde eles estão. Continuei andando enquanto minha trilha sonora ia sendo decidida pelo programa que algum nerd mais desafortunado que eu embutiu no aparelho. Fui longe demais para voltar caminhando, mas não tinha dinheiro sequer para o ônibus. Sentei em uma mesa de bar e pedi um copo de água da torneira. Começou a tocar Johnny Cash. Sorte. Me dei conta de onde estava. Mais algumas quadras e eu estava passando pelo sobradinho muquifento onde ela morava. Bateu uma saudade incontrolável e torci para tocar a nossa música. Não tínhamos uma música nossa, e

A Caminhada

Antes do pequeno chegar, toda vez que íamos para a praia, minha querida e eu escolhíamos um dia para a caminhada. Na verdade caminhávamos todos os dias, mas um deles era reservado para "a" caminhada. Era uma caminhada definidora. Uma caminhada estratégica. Nela decidíamos o rumo da vida da nossa família, até então composta apenas por nós dois. Foi numa dessas caminhadas que decidimos que nossa família não seria mais composta apenas por nós dois. E o pequeno chegou. Essa foi a decisão mais importante de todas, mas não foi a única tomada em nossas caminhadas na areia. Decidimos por construir uma casa ao invés de mudar de apartamento, decidimos que era hora de eu mudar de trabalho, decidimos viajar para o exterior algumas vezes e assim por diante. Bom, decidimos também ganhar na loteria, mas essa decisão até hoje não deu certo. Nem todas deram. Agora, dois anos e três meses depois da chegada do pequeno, cá estamos novamente. Minha querida dorme ao meu lado enquanto escrevo e a

Aposta

-           Oi, eu sou o teu anjo da guarda. -           Hum? Como? -           Teu an... Sabe do que? KABUM -           Uow, o que foi isso? -           Para provar de uma vez. Não estou com paciência para ficar te convencendo. -           Como é que você fez isso? -           Já falei, sou teu anjo da guarda. Aliás, já pedi transferência mas o chefe não aceitou. Quer testar os meus limites. -           Como assim transferência? -           De você. Não aguento mais, você dá muito trabalho. -           Que trabalho? Você está louco? Não pratico nenhum esporte radical, não transo sem camisinha, sou tranquilo no trânsito, não uso drogas, não assisto Big Brother. -           Ah é? E essa porcaria que você pede toda noite para comer em casa? Tem ideia de quantos pneus de moto eu já furei, de quantas máquinas de cartão eu já quebrei e de quantas vezes tive que trocar o teu endereço? -           Então foi você? E eu achando que era o cara mais azarado do mundo. -           Azarado sou eu, d

Uma mãe digna de Cannes

Minha primeira viagem à França foi em 1997. Meu pretexto era um congresso mundial em engenharia biomédica, tema do meu mestrado nunca concluído. Minha primeira saída do Brasil. Minha primeira viagem de avião. Como companheira de viagem, com o pretexto de não me deixar cair em nenhuma enrascada, minha mãe. Uma baita companheira de viagem, diga-se de passagem. Enquanto eu encarava as várias palestras dos 3 dias de congresso, dei à minha velha a nobre missão de filmar alguns topless da praia de Nice, a espetacular cidade litorânea da famosa Cote D´Azur. E ela filmou. Vários. Mãe é mãe. Meu filho também tem uma mãe, minha querida Tati. Quando a vejo se desdobrando para agradá-lo, sem um pingo de mau humor, lembro daquela viagem. Quando lembrei essa história, já pai e tendo testemunhado de perto a ralação diária de uma mãe dedicada, liguei para a minha pedindo desculpas. Ela não entendeu nada. Para todas as mães e futuras mães, meu mais profundo respeito e consideração, agora com a propr

História de fim de dia

O pai chegou em casa cedo naquele dia. O pequeno estava na sala, com alguns amigos que tinham vindo com ele do colégio para brincar de videogame. A mais velha estava no quarto, com alguns amigos que não tinham vindo com ela do colégio, batendo papos virtuais. A mãe estava no banho. O cachorro em todos os lugares. Chovia lá fora. Como as crianças já estavam cansando de matar monstros e fazer curvas impossíveis, o pai resolveu contar uma história. Atividade antiquada essa de contar histórias, com a TV desligada, onde já se viu. Mas não demorou muito para o pequeno e seus pequenos colegas vidrarem seus pequenos olhos no pai, mal respirando. Era sobre um ser que viveu aqui por essas paradas, há muito tempo. Um ser verdadeiramente iluminado. Apesar de não ser humano, era amigo de todos. Cada vez que ele aparecia para uma visita, nem que fosse breve, todos se alegravam. Ele inspirava planos, sonhos, música. Enquanto o pai contava, a filha mais velha se juntou à gangue. Ouviu o silêncio

Nuke

Eu devia ter uns 12 anos quando o programa Fantástico, da Rede Globo, mostrou um especial sobre as possíveis consequencias à população de uma guerra nuclear, à epoca iminente. Isso foi muito antes de eu abandonar de vez a Rede Globo, mas com certeza ajudou na decisão. Aquela cena me marcou muito, para não dizer aterrorizou profundamente. Talvez só a participação do Minotauro no sítio do pica-pau amarelo tenha chegado perto na categoria “vamos deixar essa criança sem dormir por uns dias”. E não estou usando da força de expressão aqui. De fato fiquei meses sem dormir direito. Com dois irmãos mais novos, todos dormindo no mesmo quarto, eu era o que tinha a cama perto da janela. A rua que passava ao lado do nosso quarto era de paralelepípedos. Todos os dias, perto das 11 da noite (madrugada para uma criança – sim, com 12 anos ainda éramos crianças então), o caminhão de lixo passava por ali, com aquele barulhão característico dos caminhões de lixo, amplificado pelo efeito trepidante dos p

Sergio's

O guardanapo roxo, os talheres grossos e pesados, a taça de vinho imitando cristal, o saleiro com furos em S, o pequeno pote de queijo fresco ralado e o vasilhame de um azeite de oliva duvidável. Meu Deus, estou no Sergio’s. Fui longe desta vez. Estou só. Ah sim, a Ana está na casa da mãe dela. Acho que é a primeira vez que venho aqui sem a Ana. Tomara que não dê azar. Lembro-me da primeira vez que estivemos por aqui, no começo do namoro. Eu queria impressioná-la. Funcionou. Depois, viemos comemorar todas as grandes alegrias aqui. As grandes brigas terminaram aqui também, algumas começaram. Poucas. Soube que ela estava grávida exatamente nesta mesa. Contei para ela de todas as minhas promoções comendo o mesmo ravióli de mascarpone com azeitonas pretas do Sergio’s. Pensando bem, se tivessem uma câmera filmando esta mesa, teríamos um resumo bastante representativo da nossa vida juntos, tirando as cenas x-rated , obviamente. E que vida juntos tivemos. Nos conhecemos há muito mais tempo d

Apagadão

Duarte passava boa parte do tempo apagado. Apagadão mesmo, quase em coma. Decidia beber, enchia a cara e apagava por dois ou três dias. O curioso é que durante o blackout , Duarte sempre tinha uma epifania. Uma idéia genial, transformadora. Era tão famoso por este dom, que já estava na fase de receber encomendas. Dependendo da bebida, podia direcionar seu trabalho para um assunto específico. Uísque, idéias de negócios para empresas familiares. Vinho tinto, idéias de negócios internacionais. Espumante, idéias proibidas. Cerveja, idéias para samba enredo. Martini, idéias conspiratórias ou de espionagem. E assim a coisa acontecia. Duarte andava com a agenda cheia. Alem de não pagar mais pelo vício, ganhava um bom dinheiro para ajudar as pessoas no que quer que fosse, quase morrendo a cada vez. Teve uma vez que um figurão pagou duas caixas de keep cooler para que Duarte desse uma idéia de como comprovar que a esposa dele estava se encontrando com o suposto amante em um motel da cidade

A crise é dela e ninguém tasca

Eu tenho que admitir, minha esposa é o máximo. Além do pacote básico, amor, carinho, amizade, sexo e companheirismo, ela não me deixa incomodar com atividades desnecessárias. Planeja tudo para nós. Como estou chegando perto dos 40, ela já começou a planejar a minha crise de meia idade. Não é uma querida? Disse para eu nem esquentar com esse negócio. Já está até criando umas regras básicas, para evitar constrangimentos para nós dois. Pranchão pode, mas sem descolorir o cabelo. Carro conversível depende, só se ela couber também. Nada com nome próprio e metade da idade dela está permitido. De qualquer maneira minha crise não se atreveria. Viagens para lugares exóticos também pode, mas com hotel quatro estrelas no mínimo e Starbucks por perto. Em resumo, ela assumiu minha provável crise de meia idade. A crise não é mais minha. Poxa, antes de julgar minha querida pense bem, quem é que está disposto, nos dias de hoje, a assumir a crise dos outros? É o exemplo supremo da doação matrimonial.

Curtinhas Horrorosas

Vitima tentando ganhar tempo com seu dentuço algoz: -             Poxa, deve ser emocionante a vida de vampiro! -             Nada. Não é nada do que parece. Sou apenas um pobre imortal. Quando entrou na taberna mal iluminada, todos começaram a gritar horrorizados. Foi quando o filho único do Dr. Frankenstein disse com sua voz rasgada: -             Calma gente boa, quem vê cara não vê coração, seja ele de quem for. Acordou atordoado, no meio da floresta, com as roupas rasgadas. Uma música não saia da sua cabeça. “Tomo um banho de lua ...” -             Você é apenas um jacaré que fala. -            Não sou não. -            É sim. -            Sou um monstro assustador. -            Não é não. -            Sou sim. -            Um jacarézão de batom e peruca loira. Parece um traveco do reino animal. -            Pô, não precisa apelar né? -            Foi mal cuquinha querida, você sabe que o sacizão aqui te adora né?