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Trilha


Liguei o modo aleatório do aparelhinho, coloquei os fones no ouvido e saí andar pela Lagoa. De cara tocou Creep do Radiohead para me colocar no meu devido lugar. Fui pensando que se eu voltasse para casa teria que encarar a dura realidade dos livros não lidos, da louça não lavada e da noite mal dormida em má companhia. Não voltei.

Maldito sol. O que será que houve com a fama de cidade cinza deste lugar?  Não levei meus óculos. Nem sei onde eles estão. Continuei andando enquanto minha trilha sonora ia sendo decidida pelo programa que algum nerd mais desafortunado que eu embutiu no aparelho.

Fui longe demais para voltar caminhando, mas não tinha dinheiro sequer para o ônibus. Sentei em uma mesa de bar e pedi um copo de água da torneira. Começou a tocar Johnny Cash. Sorte. Me dei conta de onde estava.

Mais algumas quadras e eu estava passando pelo sobradinho muquifento onde ela morava. Bateu uma saudade incontrolável e torci para tocar a nossa música. Não tínhamos uma música nossa, então a que tocou serviu. Não lembro qual foi.

Ganhei força para encarar o longo caminho até em casa. Cheguei exausto, mas com uma vontade louca de lavar a louça, diminuir a pilha de livros e passar a noite em claro, de preferência em má companhia. Sou eternamente grato ao programa do nerd, que escolhe minhas músicas por mim quando estou precisando.

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