O senhor Goldship viajava. Ninguém entendia o que ele dizia, nem nas rodas sociais, nem em sala de aula e ainda assim ele era muito respeitado. Às vezes as pessoas ganham respeito falando o que os outros não entendem, mesmo que seja uma tremenda bobagem. Na universidade local, dava aula de eletrônica, mais especificamente de semicondutores, sendo sua especialidade a modelagem completa de circuitos com transistores. É eu sei, o que isto importa? Por enquanto não muito, mas é bom saber com quem estamos lidando. O senhor Goldship não era casado, não tinha filhos nem irmãos, e os pais já tinham ido. Era baixo, redondo e tinha uma cara vermelha, sempre bem barbeada. Andava com dificuldade, um pouco pela idade, um pouco por um acidente de carro que sofrera anos antes.
Ele implicava com leiloeiros, apreciava mais os falsários, políticos ou até mesmo assassinos. O que explica esta estranha predileção é que logo após ele nascer sua mãe havia fugido com o leiloeiro mais famoso da cidade, deixando seu pai, que era político e, suspeita-se, falsário, com uma ira assassina só acalmada pelo fato de que o filho sobraria sozinho no mundo caso a mãe morta não pudesse ser substituída pelo pai, possivelmente preso. Com o tempo, a idade, e uma profissão que o deixava com tempo livre até demais, a implicância com estes nobres profissionais foi aumentando até virar ódio.
Se não contamos até agora o nome de batismo do senhor Goldship, é porque ele é ridículo, e não vamos fazer isto com o pobre homem. Acredite, nada do que contamos até aqui é pior do que o nome do senhor em questão. Mas voltemos à história, hoje é dia dezenove e temos que terminá-la até amanhã. Calhou do senhor Ma....., ufa! quase, Goldship estar trabalhando em um projeto onde precisaria de uma série de placas de circuitos eletrônicos que só se encontrava em aparelhos de DVD. Naquela época estes aparelhos haviam acabado de ser lançados, e a única maneira de encontra-los a um preço razoável era nos famosos leilões da receita federal, de materiais apreendidos nas alfândegas do Paraguai. A sorte sorriu para o senhor Goldship, naquela semana haveria um leilão.
Como não tinha outra escolha para terminar seu projeto, decidiu deixar o ódio de lado, colocou sua melhor roupa e foi. O evento ocorreria no prédio da receita, começando pontualmente às nove horas da manhã. Começou às dez e trinta e quatro. Por mais de quatro horas lotes e mais lotes de todos os tipos de coisas inúteis haviam sido leiloados. Foi um ano bom para a receita.
Bem no final do evento, quando o senhor Goldship já estava quase desistindo, veio o lote que tanto aguardava. Três aparelhos de DVD novinhos, cada um com a preciosa placa de circuito impresso que ele tanto precisava. Os lances começaram, quase todos os presentes queriam o lote, o senhor Goldship suava e sua cara vermelha brilhava. O preço começou a subir, já se podia dizer que estava chegando no limite, mas o senhor Goldship não iria desistir tão fácil. Não era mais uma questão de terminar seu projeto, era vingança. Ele iria acabar com a raça daquele leiloeiro safado. Esqueceu que o único que ganhava com esta história era o próprio leiloeiro. Só sobrara o senhor Goldship e uma velhinha de uns oitenta anos que ninguém sabe porque diabos queria três aparelhos de DVD. Quando o braço da velhinha começou a subir cada vez mais devagar, o senhor Goldhip vislumbrou a vitória. Ele tinha certeza que aquele seria o último lance da velhinha, esperou um pouco para causar suspense e se deliciar com o momento. Quando finalmente levantou seu braço gordo, com as mangas arregaçadas e pingando suor escutou a terceira batida do martelo e as palavras “dou-lhe três”. O leiloeiro ignorou o seu lance. Tentou protestar, mas como era o último lote todos já estavam se levantando e o barulho abafou suas palavras.
Saindo do prédio, com a cabeça baixa, transtornado, o senhor Goldship lembrou de sua mãe e começou a chorar.
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