Pular para o conteúdo principal

Rodolfo e a estátua no paraíso

Oito dias depois, sem avisar ninguém, Rodolfo foi embora daquele lugar imundo. Não aguentava mais o cheiro azedo de cerveja choca e de restos de comida espalhados pela casa. Preferia passar as férias de outro jeito, com ar fresco e quem sabe uma namorada nova. Pegou sua magrela e saiu pedalando em busca de um lugar para ficar, sem previsão de voltar para casa. Já estava na terceira praia vizinha quando encontrou uma pousada pequenina, com uma placa de madeira pendurada acima da porta de correr, e o nome: Paraíso.

Entrou e quis saber da diária, que dependia de uma série de coisas como o nome do hóspede, idade, profissão e tamanho das unhas. No caso dele o valor era acessível, de tal sorte que ficou. Tinha unhas bem cortadas e bem cuidadas. Passou vários dias circulando pelo vilarejo, curtindo o visual da praia e se apaixonando pela filha do dono da pousada, uma menina de uns vinte e poucos anos, com rosto queimado do sol e cabelos longos e ondulados até o meio das costas. Depois de tomar coragem e trocar umas palavras com a menina, Rodolfo descobriu que seu nome era Maria, e que ela não tinha namorado.

Rodolfo achava Maria tão bonita que merecia uma estátua. Mal sabia ele o que havia por trás daquele par de olhos castanhos e perdidos, que ele cada vez mais idolatrava. Não demorou para ele voltar para a cidade e começar a corresponder-se com Maria. Demorou menos ainda para ela aceitar seu pedido em casamento.

Viveram por muitos anos tranquilos. Não quiseram ter filhos por um bom tempo, é o que ele conta, mas existia a dúvida se não o podiam. Rodolfo cresceu na carreira de escritor de novelas baratas e Maria dedicava-se a criar jardins alheios.

Quando a tristeza de Maria começou a aparecer de forma mais contundente, Rodolfo quis saber se era por não terem filhos. Maria dizia que não. Rodolfo quis então saber se o amor dela por ele estava se esvaindo. Mais uma vez não. O desespero começou a bater, quando resolveram procurar ajuda. Informaram-se e foram até uma conceituada psicóloga da cidade, que diagnosticou depressão para o caso de Maria e começou a investigar as causas. Mais tarde, em reservado, a doutora alertaria Rodolfo quanto ao risco de suicídio. Seria prudente ficar de olho.

Rodolfo cuidou de Maria com uma dedicação fora do comum. Fez de tudo o que fosse possível, incluindo várias viagens para todo o mundo. Neste meio tempo, Rodolfo começou a ganhar grande notoriedade como escritor, traduzido em várias línguas pelo mundo afora. O convite para virar estátua no Madame Tussauds lhe chegou em boa hora, enquanto fazia uma das viagens de promoção de seu último livro em Londres. Exigiu que sua amada esposa estivesse representada em cera ao lado dele. Estaria finalmente imortalizada. Aceitaram.

Com o passar do tempo Maria foi melhorando, redescobriu a alegria de viver, amava Rodolfo como nunca. Era o seu anjo da guarda, que por muita sorte encontrara anos antes na pousada Paraíso. Uma noite, depois de terem finalmente decidido engravidar, relembrando o passado e o ainda passando, Rodolfo quis saber por que diabos o pai dela precisava ver o tamanho das unhas dos hóspedes para definir o preço da diária. Ela não tinha a menor idéia, mas o velho não era bobo.

Comentários

Anônimo disse…
Adoro histórias de amor, especilamente aquelas que têm um toque de mundo real dentro delas. Muito legal!
Anônimo disse…
Muito boa!!! Vai para a Piauí?

Postagens mais visitadas deste blog

Macallan ou Momentary Lapse of Reason?

  Tudo é velho agora. Eu tenho rolhas de vinhos que tomei esses dias, datadas de 15 anos atrás. Livros de 2006 que ainda não li, datados também, com meu nome em cima. Tenho filhos grandes, alguns empregos no currículo, lembranças que se confundem. E me confundem. Acho que datados não são os livros, ou as rolhas de vinho. Datado sou eu. Mas não me sinto assim, o que provavelmente é bom. Ou talvez patético. Fiz uma tatuagem nova outro dia. A tatuagem é nova, os temas antigos. Bandas que gosto há mais de 30 anos, um livro que escrevi há mais de 10. Tudo é velho agora. Os souvenires, os quadros, os móveis e principalmente os uísques. Os uísques são muito velhos, mas já foi-se o tempo em que todos eram mais velhos que eu. Hoje em dia nem todos, só os melhores. Talvez esse seja o segredo, ficar datado como os melhores uísques, não como os piores discos. Envelhecer, sei lá, mais como um Macallan do que como o Momentary Lapse of Reason. Falando em Momentary Lapse o Reason, o Pink Floyd

Nuke

Eu devia ter uns 12 anos quando o programa Fantástico, da Rede Globo, mostrou um especial sobre as possíveis consequencias à população de uma guerra nuclear, à epoca iminente. Isso foi muito antes de eu abandonar de vez a Rede Globo, mas com certeza ajudou na decisão. Aquela cena me marcou muito, para não dizer aterrorizou profundamente. Talvez só a participação do Minotauro no sítio do pica-pau amarelo tenha chegado perto na categoria “vamos deixar essa criança sem dormir por uns dias”. E não estou usando da força de expressão aqui. De fato fiquei meses sem dormir direito. Com dois irmãos mais novos, todos dormindo no mesmo quarto, eu era o que tinha a cama perto da janela. A rua que passava ao lado do nosso quarto era de paralelepípedos. Todos os dias, perto das 11 da noite (madrugada para uma criança – sim, com 12 anos ainda éramos crianças então), o caminhão de lixo passava por ali, com aquele barulhão característico dos caminhões de lixo, amplificado pelo efeito trepidante dos p

História de fim de dia

O pai chegou em casa cedo naquele dia. O pequeno estava na sala, com alguns amigos que tinham vindo com ele do colégio para brincar de videogame. A mais velha estava no quarto, com alguns amigos que não tinham vindo com ela do colégio, batendo papos virtuais. A mãe estava no banho. O cachorro em todos os lugares. Chovia lá fora. Como as crianças já estavam cansando de matar monstros e fazer curvas impossíveis, o pai resolveu contar uma história. Atividade antiquada essa de contar histórias, com a TV desligada, onde já se viu. Mas não demorou muito para o pequeno e seus pequenos colegas vidrarem seus pequenos olhos no pai, mal respirando. Era sobre um ser que viveu aqui por essas paradas, há muito tempo. Um ser verdadeiramente iluminado. Apesar de não ser humano, era amigo de todos. Cada vez que ele aparecia para uma visita, nem que fosse breve, todos se alegravam. Ele inspirava planos, sonhos, música. Enquanto o pai contava, a filha mais velha se juntou à gangue. Ouviu o silêncio