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Crochê e Dominó

Doutor Bragança acordou cedo naquele dia. Tinha desses nomes Imperiais afetados, mas era pessoa simples e de boa lida. Era simples até para acordar. Sem estardalhaço rolava para o lado da cama, calçava seus chinelos de couro velho e ia fazer o primeiro xixi do dia. Fazia muitos, coisa da idade que andava beirando os oitenta.

Conheceu Dona Genalva quando já não tinham mais os dentes próprios, no banco da praça. Ele jogava dominó na mesinha com seu companheiro de todos os dias, o Seu Armindo, enquanto ela mexia agitada as agulhinhas de crochê. Fazia muito tempo que estavam de flerte, parece que uns três ou quatro dias (muito tempo nessa idade é contado em dias), quando o distinto Doutor Brangança finalmente tomou coragem, caminhou lentamente até o banco onde estava a Dona Genalva, pediu licença para sentar-se a seu lado e iniciou um longo papo, que durou mais de ano. Casaram-se logo, pois não tinham tempo a perder. Iam todos os dias à praça e, quando ele cansava de jogar, gritava para a esposa, "Genalva, vem me buscar que eu estou cansado."

Dona Genalva era coisa de uns dez anos mais nova que o Doutor Bragança, mas tinha a saúde frágil. Sofria de um mal crônico dos pulmões, que não dava sossego para o marido. Ele mesmo não era especializado em pulmões, aliás, era de um tempo em que medicina era medicina e ponto, mas cuidava de Dona Genalva como nenhum outro médico seria capaz. Tristemente a gravidade da doença da mulher era maior do que os conhecimentos da medicina à época, de sorte (ou, no caso, azar) que ela faleceu em menos de dois anos do dia em que se conheceram. Doutor Bragança ficou inconformado, passou dias sem aparecer para as batalhas de dominó contra o Seu Armindo.

Quando voltou, delirava que Dona Genalva ainda estava ali no banco da praça, com suas agulhinhas pulando para todos os lados e seu largo sorriso de dentes comprados. Um dia, cansado de perder no dominó para seu amigo, no meio do terceiro jogo Doutor Brangança soltou a plenos pulmões (os dele eram plenos), “Genalva, vem me buscar que eu estou odiando este jogo”. Olhava para cima enquanto gritava.

Comentários

Anônimo disse…
palhaço, me fez chorar...
Anônimo disse…
Que lindo! romântico e sensível!
Fiquei arrepiada!
Amor, muito lindo esse texto....ainda mais quando se lê pela segunda vez!
Acras disse…
Muito bom. Não sou grande entendedor de coisas escritas em geral, mas me deu a impressão que este texto fugiu um pouco do seu estilo usual. E ficou muito muito bom. O que mostra que está chegando a um nível mais alto como escritor (na minha humilde opinião). Parabéns.

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