Em casa, Marco e Lili não têm condições de receber mais do que meia dúzia de pessoas para um jantar, faltam talheres, pratos e, principalmente, lugares à mesa. Entretanto, se um número absurdamente grande de amigos e parentes resolverem aparecer ao mesmo tempo para tomar um boa caneca de café, as têm para todos. Já improvisaram um pendurador de metal para elas, mas tanto este quanto os armários continuam enchendo. Eles têm de todos os tipos, a saber, das de viagens, das com mensagens de amor, das engraçadinhas, das de propaganda; têm até uma na qual se pode escrever recadinhos com uma caneta especial. Elas não param de chegar, é como se fossem programadas para acabar na casa do casal. Marco às vezes desconfia que no silêncio da noite, com insônia causada pela cafeína, elas se reproduzam. Safadas estas canecas. Marco e Lili têm problemas também quando alguém viaja. Como já criaram a fama de colecionadores, a cada vez que um conhecido escapa de férias ou a trabalho, uma ou mais os são dadas como lembrança da viagem que não fizeram. Outro dia Lili ganhou dos irmãos de Marco uma tamanho família, da loja do Cairo da Starbucks. É a terceira ou quarta da famosa rede de cafés de Seattle que o casal adiciona à coleção. De bicho então têm várias. Porco, urso, cachorro; se encherem a banheira e as jogarem na água, dá para brincar de Arca de Noé. Mas tem uma caneca que é a preferida de Marco. Ah, esta sim! Parece que o café fica melhor quando servido nesta pequena. Deve ser a preferida dos canecos nas noites de reprodução canecal, não se tem dúvidas. Não é só a mais bonita, mas com certeza é também a mais gostosa. Baixinha, morena, nem magra-palito, nem gorda-balão, Made in Brazil (o que é raridade hoje em dia, com a invasão das chinesas) e com muitíssima personalidade. Faz um bom tempo que ela é parte da coleção de Marco e Lili, ou seja, já tem uma certa idade, o que confere a ela um ar de experiência que deixa o pobre Marco ainda mais gamado. É a única da coleção que tem o privilégio de não ir para a máquina de lavar louças, frágil que é. Não, esta é lavada à mão, e só por pessoas selecionadas. Um dia uns amigos foram jantar na casa do estranho casal. No final do jantar, como de costume, Marco foi passar um café para todos. Um de seus amigos estava na cozinha com ele, esperando o café ficar pronto. Ele já tinha cuidadosamente separado as canecas para cada um, de acordo com a personalidade, para fazer graça. Por algum motivo, que até podemos imaginar, o amigo achou que combinava mais com a caneca-musa do que com a que o Marco havia separado para ele. Quando ele foi trocar as canecas, Marco pulou no seu pescoço e disse, "Essa não. Essa aí não!" Estranhamente o amigo entendeu na hora a reação de Marco, que com um sorriso aliviado e satisfeito completou, “um dia você acha a sua.”
O pai chegou em casa cedo naquele dia. O pequeno estava na sala, com alguns amigos que tinham vindo com ele do colégio para brincar de videogame. A mais velha estava no quarto, com alguns amigos que não tinham vindo com ela do colégio, batendo papos virtuais. A mãe estava no banho. O cachorro em todos os lugares. Chovia lá fora. Como as crianças já estavam cansando de matar monstros e fazer curvas impossíveis, o pai resolveu contar uma história. Atividade antiquada essa de contar histórias, com a TV desligada, onde já se viu. Mas não demorou muito para o pequeno e seus pequenos colegas vidrarem seus pequenos olhos no pai, mal respirando. Era sobre um ser que viveu aqui por essas paradas, há muito tempo. Um ser verdadeiramente iluminado. Apesar de não ser humano, era amigo de todos. Cada vez que ele aparecia para uma visita, nem que fosse breve, todos se alegravam. Ele inspirava planos, sonhos, música. Enquanto o pai contava, a filha mais velha se juntou à gangue. Ouviu o silêncio
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