Pular para o conteúdo principal

A confusão entre o brabo e o chato

Gosto de ir a pé, especialmente com meus fones no ouvido. Dá a noção real de tempo e espaço, ou melhor, a noção tradicional de tempo e espaço, pois a real ainda não se sabe se existe. Como trabalho em um lugar isolado, quando estou na cidade saio andar pelas ruas.

Outro dia saí pela vizinhança. Já ia longe quando começou a tocar no aparelhinho uma velha canção que eu havia escrito. Era uma das minhas melhores e me fez lembrar do tempo em que a escrevi. Outros tempos como diriam os melancólicos. Sou melancólico. Esta é a história desta música, ou o relato de como esta história virou música, ou qualquer coisa do tipo, que envolva a história e a música.

Não acredito que se faça boa arte sem sofrimento. Talvez por isso minhas composições sempre foram medíocres, tive até aqui uma vida muito boa. Sem pai autoritário, mãe desequilibrada, irmão traficante, nada disso. Também nunca vivi grandes decepções amorosas. Desta forma, para conseguir compor, acabei criando um personagem sofrido, mal amado, inconformado com as injustiças do mundo e revoltado com as autoridades, a religião, o governo e a coxinha gordurosa do boteco do japonês na esquina da faculdade.

Foi justamente esperando o intervalo para ir comer mais uma das coxinhas assassinas, que comecei a rabiscar no final do caderno de cálculo a letra da música. Nela descrevi a revolta de meu personagem com a violência, as regras da sociedade e, veja só, as comidas dietéticas. Segundo sua tese, éramos submissos, tínhamos baixa auto-estima e não estávamos mudando frente a todos os graves problemas da sociedade. Não custa lembrar que, naquele mesmo ano, poucos meses depois de ter escrito a música, justifiquei meu voto nas eleições presidenciais, pois tinha uma festa para ir em outra cidade. Meu personagem ficou puto comigo, mas ele que fosse à merda, quem mandava era eu, e estava na idade de me divertir.

É claro, nenhuma amizade se sustenta desta maneira. Aos poucos ele foi ficando revoltado comigo também. Entrei para a sua lista de coisas ultrajantes, nojentas e sem sentido da nossa sociedade. Foi me abandonando, me deixando para trás, deveriam existir pessoas mais integras e menos fúteis.

Para continuar compondo, tive que criar outro personagem, este mais romântico, sensível com as relações humanas e entendedor das coisas da vida, em resumo, um chato. Este não come coxinha gordurosa, prefere uma boa massa, um bom vinho e gosta de ler bons livros. Como eu falei, chato pra burro. Mas somos bons amigos. Um dia o levo para andar comigo, quem sabe encontramos meu personagem de antigamente. Acho que daria uma boa briga, e quem sabe finalmente uma boa música.

Comentários

Anônimo disse…
Sem súvida, um dos teus mais inspirados textos! Assim como WE AIN´T CHANGING é igualmente contagiante...
Anônimo disse…
Ótimo texto! Ah, quero dizer que adoro esse personagem "chato" rssss
Acras disse…
Sou irmão mais novo do digo e conheço bem os dois personagens. Enquanto aquele primeiro tocava no Jail eu tomava meu primeiro porre com vodkas gratuitas do pote de xixi (quem sabe entendeu). Com o segundo eu me relaciono pouco, pelo menos aquém do que eu gostaria. Só não concordo com uma coisa: os dois faziam boas músicas sim. E tenho uma reclamação também, eu ia nadar na hora do almoço, agora vou comer um x montanha.

falou

Postagens mais visitadas deste blog

História de fim de dia

O pai chegou em casa cedo naquele dia. O pequeno estava na sala, com alguns amigos que tinham vindo com ele do colégio para brincar de videogame. A mais velha estava no quarto, com alguns amigos que não tinham vindo com ela do colégio, batendo papos virtuais. A mãe estava no banho. O cachorro em todos os lugares. Chovia lá fora. Como as crianças já estavam cansando de matar monstros e fazer curvas impossíveis, o pai resolveu contar uma história. Atividade antiquada essa de contar histórias, com a TV desligada, onde já se viu. Mas não demorou muito para o pequeno e seus pequenos colegas vidrarem seus pequenos olhos no pai, mal respirando. Era sobre um ser que viveu aqui por essas paradas, há muito tempo. Um ser verdadeiramente iluminado. Apesar de não ser humano, era amigo de todos. Cada vez que ele aparecia para uma visita, nem que fosse breve, todos se alegravam. Ele inspirava planos, sonhos, música. Enquanto o pai contava, a filha mais velha se juntou à gangue. Ouviu o silêncio

O ensaio acabou

O ensaio acabou. Eles estavam exaustos. O ventilador de mesa nunca dava conta de mantê-los sãos nos dias de verão. Nos intervalos, cigarros e tererês, enquanto o guitarrista brincava na bateria (amor antigo para o qual nunca se entregou, mas continuava paquerando). A casa era de madeira, do baterista obviamente. No quarto ao lado, dormia a recém-nascida. Em poucos dias gravariam o primeiro CD, na época em que gravar CDs era um grande feito. As músicas estavam no ponto, ou pelo menos era o que achavam até entrarem no estúdio. O estúdio também não tinha ar condicionado, a não ser na sala de gravação. Estavam todos ansiosos. Foram dois dias só para ajustar e gravar a bateria (só o guitarrista teve saco de acompanhar todo o processo). Duas semanas no total para finalizar a obra. Depois de muitos cigarros, cervejas, erros e stress, a bolachinha ficou pronta. A pior parte foi a mixagem. A pior parte é sempre a mixagem. É quando você tenta arrumar o que não tem conserto.

Sem Planos

Esses carros modernos, pensou Marta, são tão estáveis e silenciosos que você passa dos cento e quarenta sem nem sentir. Ela estava dirigindo para visitar seu filho na faculdade em Florianópolis. João Lucas fazia engenharia mecânica, estava no segundo período e ainda tinha na cabeça o vácuo corriqueiro que se forma em calouros: entre esvaziar o cérebro dos decorebas inúteis necessários para passar no vestibular e enchê-lo novamente com cálculos, fórmulas, gráficos e tabelas, um pouco menos inúteis, que a engenharia exige. Três horas e meia de estrada para encher a geladeira do ingrato, que dará um aceno blasé quando ela chegar de viagem e entrar no minúsculo apartamento que ele divide com outros dois cabeças-oca. Marta olhou para a tela do seu BYD. Faltavam apenas oitenta quilômetros para chegar, mas as notícias não eram nada animadoras: trinta quilômetros de engarrafamento à frente. Segundo o aplicativo de GPS, a causa seria um acidente grave que estaria bloqueando a estrada. Preparou-