Pular para o conteúdo principal

Um momento de triunfo

Quando o pai sentou-se à frente do artista, os dois filhos já tinham passado a sua parte da vergonha. Uma vergonha que valeria a pena, pois imortalizaria as três ótimas semanas que haviam passado juntos, reforçando, ou quem sabe até relembrando, a amizade insubstituível entre pai e filhos. A esta altura já havia em volta do mais velho um bando de turistas, que não paravam de rir enquanto aguardavam a vez de ter suas características mais peculiares exageradas ao extremo pelas mãos habilidosas do caricaturista. Os dois irmãos também não conseguiam parar de rir, dos próprios rostos estampados na folha branca, e do que agora aparecia aos poucos entre os dois.

Acabada a obra, o artista a enrolou prendendo-a com um elástico, recebeu seu dinheiro e partiu para a próxima vítima. Os três saíram abraçados, felizes, exaustos de toda a andança de turistas e com saudades de casa. Pararam em um dos restaurantes que circulam a praça dos artistas e pediram um prato típico de mariscos ao molho de vinho branco e manteiga. Enquanto almoçavam, já embalados pelas garrafas de vinho que pediram para acompanhar e com resquícios da fumaça do arguile que haviam fumado seguidamente antes de chegar a Paris na cabeça, começaram uma retrospectiva emocionada da viagem. Uma viagem às origens, uma viagem inesquecível.

Lembraram da chegada no Cairo e da primeira contemplação do Nilo, da janela do quarto do hotel em que passariam os próximos dias. Lembraram do sufoco das catacumbas das pirâmides que haviam visitado, e da foto com os camelos, igual àquela que a avó tinha tirado, muitos anos antes, a poucos dias de embarcar para o Brasil em sua viagem definitiva. Depois a viagem até a Síria, onde visitaram a cidade do avô, cujo nome de família é muito respeitado, e lembraram do orgulho que sentiram cada vez que faziam festa para eles quando se identificavam, ainda maior do que já sentiam. Cada detalhe da viagem foi curtido entre um mergulho de pão no molho amanteigado dos mariscos e um gole de vinho francês.

Como já fosse tarde, decidiram voltar ao hotel, colado no Arco do Triunfo. Ficaram olhando o monumento construído para que Napoleão comemorasse suas vitórias de guerra. Enquanto o pai chorava pela vigésima terceira vez desde que saíram de viagem, cada filho o abraçou de um lado. Desta vez quem passava por perto não ria. A caricatura estava bem escondida e todos sabiam que momentos como este não são de brincadeira.

Comentários

Anônimo disse…
Muito lindo! Eles vão adorar!!
Acras disse…
porra... esse foi f...
pra mim o melhor de todos.
rica
Anônimo disse…
Lindo e sensível, como tudo que vem de pessoas como vc!

Postagens mais visitadas deste blog

Despertadores

Eu não sou exatamente um cara místico, que acredita muito em que tudo acontece por um motivo e tal. Ou pelo menos não era até ter meu filho e começar a me aproximar da meia idade. Agora, de verdade, meu velho ter perdido a hora no meu primeiro dia de aula em um novo colégio sempre fez meu ceticismo cair de joelhos, por assim dizer. Explico. Meu velho nunca perde a hora. Pelo contrário, a hora é que perde ele. Sempre agitado, ligadão, a mil por hora, quais eram as chances dele dormir demais no primeiro dia de aula de dois dos seus três filhos no colégio novo? Bom, alguma chance deveria ter, pois foi o que aconteceu. E esse pequeno deslize foi o que salvou a minha vida, sem exageros. Como cheguei atrasado, as carteiras próximas aos meus colegas do antigo colégio já estavam todas tomadas. Sobrou um lugar do outro lado da sala de aula, bem no meio de três figuras lendárias da cidade. Para um piá de prédio, patologicamente tímido, vindo de um colégio de filhinhos de papai, sentar no meio ...

Triathlon de Noel

Natal de 2010. Na verdade antevéspera de Natal, dia 23 de Dezembro. Faz 5 minutos que saí de uma reunião com um fornecedor crítico, que está quase parando a linha de produção de um de nossos clientes. Em mais 25 minutos entro em outra, com outro fornecedor crítico, que está quase parando a linha de produção de outro de nossos clientes. 2010 foi assim, basicamente uma corrida só, em três modalidades. Modalidade número 1, a já mencionada corrida atrás de peças para nossos clientes. Modalidade número 2, a emocionante corrida atrás do desenvolvimento pessoal. Já contei em outras ocasiões que todos os anos eu me isolo, por dois ou três dias, para fazer uma reflexão do ano que passou, das evoluções conquistadas e do que está por vir. Depois tenho o ano todo para dar os próximos passos. De fato dei muitos passos esse ano, mas sempre correndo contra o relógio. Clichê verdadeiro esse, como todos os clichês. E finalmente a melhor de todas. A modalidade número 3, corrida com revezamentos e ...

Sem Planos

Esses carros modernos, pensou Marta, são tão estáveis e silenciosos que você passa dos cento e quarenta sem nem sentir. Ela estava dirigindo para visitar seu filho na faculdade em Florianópolis. João Lucas fazia engenharia mecânica, estava no segundo período e ainda tinha na cabeça o vácuo corriqueiro que se forma em calouros: entre esvaziar o cérebro dos decorebas inúteis necessários para passar no vestibular e enchê-lo novamente com cálculos, fórmulas, gráficos e tabelas, um pouco menos inúteis, que a engenharia exige. Três horas e meia de estrada para encher a geladeira do ingrato, que dará um aceno blasé quando ela chegar de viagem e entrar no minúsculo apartamento que ele divide com outros dois cabeças-oca. Marta olhou para a tela do seu BYD. Faltavam apenas oitenta quilômetros para chegar, mas as notícias não eram nada animadoras: trinta quilômetros de engarrafamento à frente. Segundo o aplicativo de GPS, a causa seria um acidente grave que estaria bloqueando a estrada. Preparou-...