Contava cada uma das 33 pedras do seu masbaha favorito pela décima vez para esquecer o que tinha acabado de passar. Não era religioso, muito menos muçulmano. Conhecia apenas um dos 99 nomes de Allah, justamente este, e usava o masbaha apenas para aliviar as tensões do dia-a-dia e esquecer-se dos problemas, que àqueles tempos eram muitos.
Sua esposa, que o observava pela fresta da porta entreaberta do escritório, também tinha seus próprios problemas, mas o maior de todos é o que tinham em comum. Há tempos não podiam suportar a companhia do outro. Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite.
Não tinham filhos e estavam juntos a tempo suficiente para se esquecerem do tempo em que estavam juntos. Eram como inimigos de guerra presos na mesma cela, que tiveram que aprender a se respeitar, pois a outra opção era fatal.
Ele passou mais umas duas horas apertando as pedras de Allah antes de ir para a cama. Entrou o mais quieto possível debaixo das cobertas, para evitar mais uma discussão inútil, e dormiu.
De manhã ela fez o mesmo, só que no caminho inverso. Saiu a mais quieta possível debaixo das cobertas, e foi trabalhar. Era a única coisa com a qual realmente se importava, atender os clientes de sua agência de turismo, que havia um bom tempo era a única fonte de renda do casal. De tempos em tempos partia como guia para uma viagem com algum grupo de turistas idosos. Foi numa dessas viagens, daquela vez para Damasco, que comprou o masbaha que seu marido tanto gostava de contar, enquanto esperava a próxima viagem dela para ser feliz.
Quando ela chegou em casa no final do dia o procurou para anunciar seu próximo destino. Desta vez iria sozinha. Ele estremeceu.
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