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Uvas do tamanho de dedos

Há exatamente quatorze anos me mudei para Curitiba. Bem, faltam ainda uns quatro meses para que a palavra exatamente cumpra seu papel na frase anterior, mas vamos deixar por isso mesmo. Anos depois que minha família me deixou sozinho pela primeira vez, descobri que assim que dobraram a esquina para voltar para casa, todos caíram no choro. Fico estranhamente feliz de me recordar deste fato. Não gosto de ver ninguém chorar, mas saber que eu faria alguma falta me deixou contente. E como na prática não cheguei a ver ninguém chorando, fica tudo certo. Assim é a minha família.

Para quem assistiu ao filme "Casamento Grego" é só imaginar uma família parecida, mas com homens de nariz maior e que, ao invés de restaurantes, são donos de lojas de armarinhos, camisas, cuecas e roupas femininas. Todo o resto do pacote é igual. Por exemplo, para meus pais, tios, avós e até alguns primos (que não necessariamente são primos de verdade), todas as palavras descendem do árabe. Por exemplo, televisão não é a união óbvia das palavras têle (grega, significando "longe") e visione (latina, significando "ato de ver"), e sim uma palavra quase homófona da expressão árabe tel-ehv-ishram, que nem alá sabe o que significa. Falando em alá, toda a minha família é católica, o que significa que ninguém usa a burca, e ao contrário do que meus avós talvez preferissem, pude casar sem maiores problemas com uma italianinha linda.

Foi interessante ser criado em uma família árabe. Esta história de que todo mundo é primo é a mais pura verdade. E todo mundo é tio também. Como meus pais sempre foram amigos dos meus sogros, muito antes de conhecer minha esposa eu já os chamava de tio e tia. Quando comecei a namorar foi um rolo, não sabia como chamá-los. Por sorte meu sogro é médico, e passei a chamá-lo de doutor. Minha sogra eu chamo de sogra. É justo, não é?
Outra característica interessante de uma família árabe é que sempre que estamos em alguma refeição, o assunto é sempre a próxima. Almoça-se planejando a janta. Janta-se planejando o café da manhã e assim por diante. Fica até engraçado.

- Mãe, o que vamos ter na janta?
- Arroz com lentilha.
- Hummmm que delícia, adoro lentilha. Passa o quibe?
- Que quibe? O quibe foi ontem!

Parece uma refeição constante, apenas com alguns intervalos sem comida. Aliás, exagero também é parte da cultura. E claro, mais uma herança que carrego. As histórias da família sempre envolvem uvas do tamanho de dedos e mais doces do que mel, brigas com mais de 100 pessoas, as mulheres mais lindas do mundo, e assim por diante. É assim que funciona. Pergunte para qualquer um da família, desta vez não exagerei. Só um pouquinho.

Comentários

Acras disse…
Cara, esse texto ficou muito legal! Muito bom mesmo! Sem exagero....
Anônimo disse…
Amor, adorei esse texto! Em família de italiano também é assim, mas você já sabe disso né??
Beijo!
Anônimo disse…
Faltou um detalhe para se fazer justica. (estou sem acentos e cedilhas, desculpem) Conheci meu genro Rodrigo, quando ele tinha uns 3 ou 4 anos. Sempre o chamei de Rodrigo, quando ele casou com minha filha, passei a chama-lo de Digo, Diguinho. E agora, lendo aqui, passei de tia para sogra! Claro que eu ja havia percebido, mas nunca parei para pensar se e justo!!!! rssssssss

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