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Sobre chuva de sapos e um menino sírio


O cinema, como em muitas vezes, especialmente em situações complicadas, nos ajuda a entender o que acontece na vida de verdade. Boa parte das vezes nos levando aos extremos.

Quem lembra do filme Magnólia, de1999, não deve ter se esquecido da famosa cena da chuva de sapos. O filme é uma coletânea de absurdos aos quais estamos acostumados e, de verdade, não achamos mais absurdos. A cena é o resumo perfeito de todo o resto do filme. Um dos personagens está dirigindo seu carro quando começa a chover sapos. O estranhamento dura poucos segundos, para logo em seguida as coisas voltarem ao normal. Sem sustos, sem questionamentos. Estamos anestesiados.

O oposto total é belamente retratado no filme A espera de um milagre, curiosamente do mesmo ano de 1999. O personagem de Michael Clarke Duncan é um presidiário no corredor da morte, falsamente acusado de assassinar duas crianças, e supostamente com poderes sobrenaturais, especialmente o de cura. Em uma explicação muito tosca, ele é uma espécie de esponja de todo o mal do mundo, de todas as coisas ruins que acontecem. Tudo o afeta. Sofre com o sofrimento de todos, e isso é o pior castigo, muito pior do que a prisão.

Eu achava, até hoje cedo, que estávamos irremediavelmente pendendo para o lado da anestesia. É tanta notícia ruim, que acabamos nos acostumando. Responda com sinceridade, como aguentaríamos sofrer profundamente com cada notícia de bomba no oriente médio? Chove sapo o tempo todo, e não achamos mais que isso é absurdo. O problema é que ontem não choveu sapo, não senhor, ontem choveu lava, ácido, qualquer coisa que seja, que acabou arrancando um pedaço da minha alma. Sofri o sofrimento do mundo, e está demorando para passar.

Não sei se foi a imagem em si, ou o fato de eu ter um menininho de 3 anos (que tem pelo menos metade do sangue sírio por culpa minha), ou se apesar de anestesiado eu ainda sou humano, mas o ocorrido com o menino Sírio encontrado morto em uma praia da Turquia me abalou absurdamente. Pela primeira vez tive medo, muito medo de que tipo de lugar estamos deixando para as crianças que não tiveram a mesma sorte do pobrinho sírio.


Que esse pai tenha forças para superar o insuperável, ou pelo menos para encontrar um jeito de continuar vivendo. Que pelo menos essa tragédia sirva para deixarmos o absurdo para as telas do cinema.

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