Pular para o conteúdo principal

Quando os mestres não ajudaram

Que não faltasse grafite nem folhas em branco. Com uma paisagem daquelas, estava disposto a escrever até fazer calos nos dedos. Se fosse bem honesto, admitiria que a paisagem não era aquilo tudo. Sua vontade de encher páginas tinha mais que ver com seu estado de espírito, relaxado e satisfeito com o descanso daqueles dias de férias. Abriu uma lata de refrigerante, deu dois apertões na ponta de sua lapiseira, abriu seu Moleskini - presente de um grande amigo - na página 23 (tivera a paciência de numerar as páginas para facilitar futuras e incertas referências), respirou fundo e começou a escrever. Enrolou por algumas linhas, esperando a inspiração que não tardaria a dar as caras. Lembrou do Hemingway que acabara de ler, e da comovente luta entre amigos - o velho e o peixe. Confessou para sua própria consciência a preguiça que estava de começar seu primeiro Shakespeare, que aguardava com paciência britânica na fila da prateleira. Nenhum dos mestres ajudou, continuava sem ideias. Olhou à sua volta, talvez a ajuda viesse das coisas mais simples. Reparou em uma pomba, trabalhando firme na construção da futura moradia de seus filhotes, um pequeno galho por vez. Aproveitou para contar quantas diferentes espécies de pássaros circulavam por ali naquele momento - uma, apenas a pomba empenhada. Olhou as plantas no jardim e se lembrou de que não entende nada de plantas. Fazia um calor considerável àquela hora. A inspiração não vinha, continuou percorrendo o local com os olhos. Pingava de suor. O refrigerante terminara, a página 23 do caderno também, e ele continuava enrolando. Era uma questão de honra escrever pelo menos alguma coisa que prestasse. Viu o cachorro, que acabara de voltar do banho, correndo pelo jardim. Escutou seu filho gargalhando ao longe com alguma coisa da televisão. Nada. Mudou a cadeira de posição para ver se ajudava e avistou a piscina ...

Comentários

Ah, summertime!!
Acras disse…
De onde vem a inspiração? Com certeza não vem dos antidepressivos!
Fabian Oliveira disse…
Boa pergunta. Uma vez ouvi falar que idéias vêm da necessidade. Gostei da definição.

Postagens mais visitadas deste blog

História de fim de dia

O pai chegou em casa cedo naquele dia. O pequeno estava na sala, com alguns amigos que tinham vindo com ele do colégio para brincar de videogame. A mais velha estava no quarto, com alguns amigos que não tinham vindo com ela do colégio, batendo papos virtuais. A mãe estava no banho. O cachorro em todos os lugares. Chovia lá fora. Como as crianças já estavam cansando de matar monstros e fazer curvas impossíveis, o pai resolveu contar uma história. Atividade antiquada essa de contar histórias, com a TV desligada, onde já se viu. Mas não demorou muito para o pequeno e seus pequenos colegas vidrarem seus pequenos olhos no pai, mal respirando. Era sobre um ser que viveu aqui por essas paradas, há muito tempo. Um ser verdadeiramente iluminado. Apesar de não ser humano, era amigo de todos. Cada vez que ele aparecia para uma visita, nem que fosse breve, todos se alegravam. Ele inspirava planos, sonhos, música. Enquanto o pai contava, a filha mais velha se juntou à gangue. Ouviu o silêncio

O ensaio acabou

O ensaio acabou. Eles estavam exaustos. O ventilador de mesa nunca dava conta de mantê-los sãos nos dias de verão. Nos intervalos, cigarros e tererês, enquanto o guitarrista brincava na bateria (amor antigo para o qual nunca se entregou, mas continuava paquerando). A casa era de madeira, do baterista obviamente. No quarto ao lado, dormia a recém-nascida. Em poucos dias gravariam o primeiro CD, na época em que gravar CDs era um grande feito. As músicas estavam no ponto, ou pelo menos era o que achavam até entrarem no estúdio. O estúdio também não tinha ar condicionado, a não ser na sala de gravação. Estavam todos ansiosos. Foram dois dias só para ajustar e gravar a bateria (só o guitarrista teve saco de acompanhar todo o processo). Duas semanas no total para finalizar a obra. Depois de muitos cigarros, cervejas, erros e stress, a bolachinha ficou pronta. A pior parte foi a mixagem. A pior parte é sempre a mixagem. É quando você tenta arrumar o que não tem conserto.

Sem Planos

Esses carros modernos, pensou Marta, são tão estáveis e silenciosos que você passa dos cento e quarenta sem nem sentir. Ela estava dirigindo para visitar seu filho na faculdade em Florianópolis. João Lucas fazia engenharia mecânica, estava no segundo período e ainda tinha na cabeça o vácuo corriqueiro que se forma em calouros: entre esvaziar o cérebro dos decorebas inúteis necessários para passar no vestibular e enchê-lo novamente com cálculos, fórmulas, gráficos e tabelas, um pouco menos inúteis, que a engenharia exige. Três horas e meia de estrada para encher a geladeira do ingrato, que dará um aceno blasé quando ela chegar de viagem e entrar no minúsculo apartamento que ele divide com outros dois cabeças-oca. Marta olhou para a tela do seu BYD. Faltavam apenas oitenta quilômetros para chegar, mas as notícias não eram nada animadoras: trinta quilômetros de engarrafamento à frente. Segundo o aplicativo de GPS, a causa seria um acidente grave que estaria bloqueando a estrada. Preparou-