Pular para o conteúdo principal

O negócio

Assim como o lobisomem culpa a lua, mas não se prepara para o que já sabe que acontecerá, João culpava a má sorte, o governo e a situação no Oriente Médio pelo seu fracasso. Não conseguia entender como é que os pedidos não vinham. Sua ideia de vender berinjela seca e salgada para o lanche de qualquer hora era genial. Não importava quantas vezes o haviam prevenido, era genial e pronto. Teimosia talvez fosse algo que João devesse prestar mais atenção.

Depois de meses tentando e de ter entupido a família com o infame legume em todas as suas possíveis formas de apresentação, não tinha mais o que fazer com o estoque e com os equipamentos que havia comprado para seu novo e já fracassado negócio. Entrou no e-Bay e pôs à venda 50 quilos de berinjela, um forno industrial e uma empacotadeira. Está claro que não vendeu as berinjelas, mas conseguiu um bom preço pelo resto. Outro gênio começaria seu próprio negócio, talvez agora com chuchu ou abobrinhas.

Andava de um lado para outro, pensando em todos os detalhes do fracasso. Onde foi que tinha errado? Descobriu (ou determinou) que o problema eram os clientes, que ainda não estavam preparados para a novidade. A próxima investida teria que ser em algo mais tradicional, à prova da trivialidade da clientela. Chega de arriscar, o negócio é ganhar dinheiro. Pensou por dias, semanas, meses, até que chegou a uma conclusão.

Fez o plano de negócios, procurou fornecedores, comprou o maquinário e em pouco tempo reinaugurou seu negócio de berinjelas. Desta vez emplacaria. As notícias não paravam de anunciar um novo processo de paz no Oriente Médio.

Comentários

Acras disse…
Excellent!
Maria Ercília disse…
Muito bom!!!

Postagens mais visitadas deste blog

Despertadores

Eu não sou exatamente um cara místico, que acredita muito em que tudo acontece por um motivo e tal. Ou pelo menos não era até ter meu filho e começar a me aproximar da meia idade. Agora, de verdade, meu velho ter perdido a hora no meu primeiro dia de aula em um novo colégio sempre fez meu ceticismo cair de joelhos, por assim dizer. Explico. Meu velho nunca perde a hora. Pelo contrário, a hora é que perde ele. Sempre agitado, ligadão, a mil por hora, quais eram as chances dele dormir demais no primeiro dia de aula de dois dos seus três filhos no colégio novo? Bom, alguma chance deveria ter, pois foi o que aconteceu. E esse pequeno deslize foi o que salvou a minha vida, sem exageros. Como cheguei atrasado, as carteiras próximas aos meus colegas do antigo colégio já estavam todas tomadas. Sobrou um lugar do outro lado da sala de aula, bem no meio de três figuras lendárias da cidade. Para um piá de prédio, patologicamente tímido, vindo de um colégio de filhinhos de papai, sentar no meio ...

Sem Planos

Esses carros modernos, pensou Marta, são tão estáveis e silenciosos que você passa dos cento e quarenta sem nem sentir. Ela estava dirigindo para visitar seu filho na faculdade em Florianópolis. João Lucas fazia engenharia mecânica, estava no segundo período e ainda tinha na cabeça o vácuo corriqueiro que se forma em calouros: entre esvaziar o cérebro dos decorebas inúteis necessários para passar no vestibular e enchê-lo novamente com cálculos, fórmulas, gráficos e tabelas, um pouco menos inúteis, que a engenharia exige. Três horas e meia de estrada para encher a geladeira do ingrato, que dará um aceno blasé quando ela chegar de viagem e entrar no minúsculo apartamento que ele divide com outros dois cabeças-oca. Marta olhou para a tela do seu BYD. Faltavam apenas oitenta quilômetros para chegar, mas as notícias não eram nada animadoras: trinta quilômetros de engarrafamento à frente. Segundo o aplicativo de GPS, a causa seria um acidente grave que estaria bloqueando a estrada. Preparou-...

Seagazer

Como ser humano assumida e eternamente perplexo com a grandeza e as maravilhas do oceano, sempre percebo quando estou diante de um semelhante. Nós, os Seagazers , somos facilmente reconhecíveis. É só prestar atenção aos braços largados ao lado do corpo (ou as mãos dadas atrás das costas, uma variação que, à exceção do físico prejudicado e do fato de não usarmos sungas vermelhas, pode faze-lo nos confundir com salva-vidas prontos para a ação), ao olhar fixo no horizonte oceânico, às pernas um pouco espaçadas e a uma leve inclinação a sair nadando até desaparecer. No meu caso específico – pois não sou um porta-voz da nossa espécie, ou algo do tipo – se tiver um par de fones brancos no ouvido, com, por exemplo, Stargazer (um tipo mais conhecido mas não menos esquisito de Gazer ) do Mother Love Bone tocando, ainda melhor. Pode ser também a Oceans do Pearl Jam . Hoje, curtindo o último dia de férias na praia, descobri um novo membro do nosso seleto grupo de lunáticos. Meu filho. Ele te...