Pular para o conteúdo principal

De uma hora para outra

Antes que alguém pergunte, essa história não é inédita, ela já aconteceu. Apenas ninguém tinha tomado tempo para colocá-la em palavras, e é isso que vamos tentar fazer. Não foi assim, de uma hora para outra, que ele resolveu apagar suas memórias. Arquitetou tudo direitinho. Começou pelas fotos que mantinha dos tempos de escola e das antigas namoradas. Cancelou todas as suas contas em bancos, sítios eletrônicos e no bar do Joca. Deixou a barba crescer, o cabelo que restava também. Parou de andar no calçadão da Atlântica e de visitar os parentes. Só não conseguiu parar de fumar, mas este é um hábito que não define uma pessoa e portanto não estragaria seu plano de sumir aos poucos. Na verdade, como bem sabemos, poderia até acelerá-lo. Deu seus ternos para o porteiro antes de se mudar. Cortou as mangas das camisas e as calças à altura dos joelhos. Passaria o resto de seus dias lendo e relendo seus livros preferidos, escutando seus discos de música de elevador e bebendo água tônica com limão espremido. Não se pode afirmar que estava passando pela crise da meia idade, pois não temos certeza que ele vai durar mais o mesmo tanto que durou até aqui.

Tinha tirado férias para colocar seu plano em prática e, por questão ética (e financeira), voltou ao escritório quando elas acabaram. Acertou a papelada e pegou o dinheiro que tinha direito após quinze anos de trabalho duro. Iria precisar dele para sumir com dignidade. Quando seu chefe ofereceu um aumento generoso para que ele desistisse de ir embora, arrependeu-se de ter dados os ternos ao porteiro.

Comentários

La vie change tout le temps...
j´ai beaucoup aimé ce texte!!

Postagens mais visitadas deste blog

Despertadores

Eu não sou exatamente um cara místico, que acredita muito em que tudo acontece por um motivo e tal. Ou pelo menos não era até ter meu filho e começar a me aproximar da meia idade. Agora, de verdade, meu velho ter perdido a hora no meu primeiro dia de aula em um novo colégio sempre fez meu ceticismo cair de joelhos, por assim dizer. Explico. Meu velho nunca perde a hora. Pelo contrário, a hora é que perde ele. Sempre agitado, ligadão, a mil por hora, quais eram as chances dele dormir demais no primeiro dia de aula de dois dos seus três filhos no colégio novo? Bom, alguma chance deveria ter, pois foi o que aconteceu. E esse pequeno deslize foi o que salvou a minha vida, sem exageros. Como cheguei atrasado, as carteiras próximas aos meus colegas do antigo colégio já estavam todas tomadas. Sobrou um lugar do outro lado da sala de aula, bem no meio de três figuras lendárias da cidade. Para um piá de prédio, patologicamente tímido, vindo de um colégio de filhinhos de papai, sentar no meio ...

Sem Planos

Esses carros modernos, pensou Marta, são tão estáveis e silenciosos que você passa dos cento e quarenta sem nem sentir. Ela estava dirigindo para visitar seu filho na faculdade em Florianópolis. João Lucas fazia engenharia mecânica, estava no segundo período e ainda tinha na cabeça o vácuo corriqueiro que se forma em calouros: entre esvaziar o cérebro dos decorebas inúteis necessários para passar no vestibular e enchê-lo novamente com cálculos, fórmulas, gráficos e tabelas, um pouco menos inúteis, que a engenharia exige. Três horas e meia de estrada para encher a geladeira do ingrato, que dará um aceno blasé quando ela chegar de viagem e entrar no minúsculo apartamento que ele divide com outros dois cabeças-oca. Marta olhou para a tela do seu BYD. Faltavam apenas oitenta quilômetros para chegar, mas as notícias não eram nada animadoras: trinta quilômetros de engarrafamento à frente. Segundo o aplicativo de GPS, a causa seria um acidente grave que estaria bloqueando a estrada. Preparou-...

Seagazer

Como ser humano assumida e eternamente perplexo com a grandeza e as maravilhas do oceano, sempre percebo quando estou diante de um semelhante. Nós, os Seagazers , somos facilmente reconhecíveis. É só prestar atenção aos braços largados ao lado do corpo (ou as mãos dadas atrás das costas, uma variação que, à exceção do físico prejudicado e do fato de não usarmos sungas vermelhas, pode faze-lo nos confundir com salva-vidas prontos para a ação), ao olhar fixo no horizonte oceânico, às pernas um pouco espaçadas e a uma leve inclinação a sair nadando até desaparecer. No meu caso específico – pois não sou um porta-voz da nossa espécie, ou algo do tipo – se tiver um par de fones brancos no ouvido, com, por exemplo, Stargazer (um tipo mais conhecido mas não menos esquisito de Gazer ) do Mother Love Bone tocando, ainda melhor. Pode ser também a Oceans do Pearl Jam . Hoje, curtindo o último dia de férias na praia, descobri um novo membro do nosso seleto grupo de lunáticos. Meu filho. Ele te...