Pular para o conteúdo principal

Memórias da barriga

Não sou compulsivo com comida, mas desde sempre uma das coisas que mas me deixa irritado é estar com fome. Se tenho uma reunião de trabalho que começa ao meio-dia, tenho que comer alguma coisa antes para conseguir me concentrar no assunto. Se vou jantar fora e a comida começa a demorar, começo a olhar para os lados e perder a paciência. Acho que é mais uma herança de família.

Quando minha avó paterna era viva e íamos almoçar na casa dela aos domingos, invariavelmente as crianças estavam com fome muito antes do almoço ficar pronto. Minha avó, que não conseguia ver os netos descontentes, improvisava um pão francês com margarina e açúcar que, se no conceito parece terrível, na prática salvava nossas vidas, e principalmente a dos adultos, que não precisavam ficar aguentando choradeira. Esta receita é uma das primeiras das quais me lembro com muito carinho. Nunca tive coragem de experimentar depois de adulto, para não estragar a boa lembrança. Já cometi este erro ao assistir à versão original da Fantástica Fábrica de Chocolates recentemente, e estragar uma das memórias mais bacanas que uma pessoa que era criança nos anos 70 e 80 poderia ter.

Outra lembrança dos meus tempos de criança eram os pasteizinhos de requeijão que minha mãe fazia. Na verdade não eram pastéis e não eram de requeijão. Eram como pequenas esfihas fechadas, recheadas com ricota temperada, uma receita árabe que leva aquele nome por algum motivo que ignoro. O fato é que a cada fornada que saía, minha mãe ia enchendo um tupperware verde, que ficava escondido atrás da porta da cozinha para que, com o seu consentimento tácito, os roubássemos aos poucos, antes de esfriar.

Lembro também, com não menos água na boca, das esfihas da minha outra avó. Esqueça tudo o que você comeu como esfiha por aí. Aquilo sim é que era esfiha. Primeiro vamos esclarecer algumas coisas, esfiha fechada é coisa de bar (com a exceção do pastelzinho de requeijão descrito acima), esfiha de queijo ou, mais recentemente, de chocolate, é coisa de fast food árabe de quinta categoria. Esfiha é aberta, de carne, assada no forno, com muita manteiga. E era assim a da minha avó, uma receita magnífica e inimitável. Na verdade, muitas receitas desta avó merecem a mesma classificação, como o quibe recheado com gordura de carneiro assado na brasa, ou a tripa de carneiro recheada e assim por diante, mas vou parar na esfiha, que é a lembrança mais querida que guardo daqueles tempos de infância.

Nos Estados Unidos, onde tudo tem que se encaixar em alguma classificação, deram às comidas caseiras, simples e que lembram a infância, o nome de comfort food. Não creio que estas receitas que descrevi se encaixem nesta categoria, principalmente porque sinto uma fome incontrolável e extremamente desconfortável ao me lembrar delas. Como ainda falta um bom tempo para o almoço, vou ali preparar um pão com margarina e açúcar antes que eu me irrite.

Comentários

O jeito como vc descreve os pratos é de abrir o apetite...
Adorei o texto culinário!
Acras disse…
hahahaha, eu não sabia de onde eu gostava de pão com margarina e açúcar.
Ninguém nunca acredita que é bom... pode re-experimentar que é excelente mesmo.

Postagens mais visitadas deste blog

Seagazer

Como ser humano assumida e eternamente perplexo com a grandeza e as maravilhas do oceano, sempre percebo quando estou diante de um semelhante. Nós, os Seagazers , somos facilmente reconhecíveis. É só prestar atenção aos braços largados ao lado do corpo (ou as mãos dadas atrás das costas, uma variação que, à exceção do físico prejudicado e do fato de não usarmos sungas vermelhas, pode faze-lo nos confundir com salva-vidas prontos para a ação), ao olhar fixo no horizonte oceânico, às pernas um pouco espaçadas e a uma leve inclinação a sair nadando até desaparecer. No meu caso específico – pois não sou um porta-voz da nossa espécie, ou algo do tipo – se tiver um par de fones brancos no ouvido, com, por exemplo, Stargazer (um tipo mais conhecido mas não menos esquisito de Gazer ) do Mother Love Bone tocando, ainda melhor. Pode ser também a Oceans do Pearl Jam . Hoje, curtindo o último dia de férias na praia, descobri um novo membro do nosso seleto grupo de lunáticos. Meu filho. Ele te...

O nome do longo hiato

Tenho agora algo em torno de doze leitores assíduos. É demais para a minha cabeça. Esse negócio está fugindo do controle. Antes eram apenas minha doce esposa, minha sogra, meu pai e meu irmão mais novo. Estava tudo sob controle. Agora que tem outros oito, me sinto na obrigação de justificar o longo hiato entre o último texto e este, e entre este e os próximos, que provavelmente será tão longo quanto. A justificativa tem seis meses, nove quilos, o primeiro dente e responde por filhão ou gorducho, só que deste último ele não gosta muito. Falando nele, vai aí uma dica de veterano para aqueles que tem filhos de cinco, quatro, três, dois ou um mês, mais conhecidos como calouros. Tudo o que te disseram sobre os nenéns - perceba, eu não disse quase tudo, ou muito do que, ou a maioria, eu disse TUDO - é mentira ou não se aplicará ao seu. Só para dar um exemplo, um colega de trabalho me disse categoricamente que as cólicas, quando existem, acabam como que num passe de mágica no exato momento ...

Despertadores

Eu não sou exatamente um cara místico, que acredita muito em que tudo acontece por um motivo e tal. Ou pelo menos não era até ter meu filho e começar a me aproximar da meia idade. Agora, de verdade, meu velho ter perdido a hora no meu primeiro dia de aula em um novo colégio sempre fez meu ceticismo cair de joelhos, por assim dizer. Explico. Meu velho nunca perde a hora. Pelo contrário, a hora é que perde ele. Sempre agitado, ligadão, a mil por hora, quais eram as chances dele dormir demais no primeiro dia de aula de dois dos seus três filhos no colégio novo? Bom, alguma chance deveria ter, pois foi o que aconteceu. E esse pequeno deslize foi o que salvou a minha vida, sem exageros. Como cheguei atrasado, as carteiras próximas aos meus colegas do antigo colégio já estavam todas tomadas. Sobrou um lugar do outro lado da sala de aula, bem no meio de três figuras lendárias da cidade. Para um piá de prédio, patologicamente tímido, vindo de um colégio de filhinhos de papai, sentar no meio ...