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Sem Planos

Esses carros modernos, pensou Marta, são tão estáveis e silenciosos que você passa dos cento e quarenta sem nem sentir. Ela estava dirigindo para visitar seu filho na faculdade em Florianópolis. João Lucas fazia engenharia mecânica, estava no segundo período e ainda tinha na cabeça o vácuo corriqueiro que se forma em calouros: entre esvaziar o cérebro dos decorebas inúteis necessários para passar no vestibular e enchê-lo novamente com cálculos, fórmulas, gráficos e tabelas, um pouco menos inúteis, que a engenharia exige. Três horas e meia de estrada para encher a geladeira do ingrato, que dará um aceno blasé quando ela chegar de viagem e entrar no minúsculo apartamento que ele divide com outros dois cabeças-oca. Marta olhou para a tela do seu BYD. Faltavam apenas oitenta quilômetros para chegar, mas as notícias não eram nada animadoras: trinta quilômetros de engarrafamento à frente. Segundo o aplicativo de GPS, a causa seria um acidente grave que estaria bloqueando a estrada. Preparou-
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Macallan ou Momentary Lapse of Reason?

  Tudo é velho agora. Eu tenho rolhas de vinhos que tomei esses dias, datadas de 15 anos atrás. Livros de 2006 que ainda não li, datados também, com meu nome em cima. Tenho filhos grandes, alguns empregos no currículo, lembranças que se confundem. E me confundem. Acho que datados não são os livros, ou as rolhas de vinho. Datado sou eu. Mas não me sinto assim, o que provavelmente é bom. Ou talvez patético. Fiz uma tatuagem nova outro dia. A tatuagem é nova, os temas antigos. Bandas que gosto há mais de 30 anos, um livro que escrevi há mais de 10. Tudo é velho agora. Os souvenires, os quadros, os móveis e principalmente os uísques. Os uísques são muito velhos, mas já foi-se o tempo em que todos eram mais velhos que eu. Hoje em dia nem todos, só os melhores. Talvez esse seja o segredo, ficar datado como os melhores uísques, não como os piores discos. Envelhecer, sei lá, mais como um Macallan do que como o Momentary Lapse of Reason. Falando em Momentary Lapse o Reason, o Pink Floyd

1975

  Em 1975 o Bill Gates criou a Microsoft. Ele queria um PC na mesa de cada pessoa. No mesmo ano a infame Guerra do Vietnam chegou finalmente ao fim. O professor húngaro Ernő Rubik criou um quebra-cabeças conhecido por aqui como cubo mágico. No cinema filmaços como Um Estranho no Ninho e Tubarão estrearam. A primeira mulher foi eleita para liderar o partido conservador inglês, Maggie Tatcher. Ainda neste ano mágico lançaram dois sistemas de vídeo caseiro, o VHS e o Betamax. Steve Jobs e Stephen Wozniak começaram a trabalhar juntos no design de computadores e desenvolveram o protótipo do Apple 1. Nevou em Curitiba, fato que só ocorreria novamente em 2013, e por menos de 5 minutos. Saiu no Brasil a primeira edição da revista Playboy. E isso tudo sem falarmos do principal. Neste ano foram lançados A Night at the Opera do Queen, Physical Graffiti do Led Zeppelin, Born to Run do Boss Springsteen, e Wish you Were Here do Floyd.   E em 16 de janeiro eu nasci. Não me julgue. A competição esta

Bad Religion in Curitiba - 1996

Those were the early days of internet, especially in Brazil. Luckily, I was an engineer student in a Federal University in Curitiba. Internet in Brazil was a privilege of some universities (mine included), so I had access to the web. And I had e-mail. It was the early days of 1996 and I was working as a student researcher in the AI lab of my college. It was boring, and I loved rock´n´roll, as all smart and bored kids did. Since 1993, after a disastrous attempt to play an RPG game at a friend´s house, I met the band that would change my life forever, Bad Religion (@badreligionband). How I met the band is a long and different story, but since then I became a huge fan and started a punk rock band thanks to them. Well, back to the lab and the e-mail access, after long hours of research, and thanks to the naivety reigning on the early days of the web, I managed to find out the e-mail of Bad Religion´s manager at the time, Michele Ceazan (@monsqueeze). So I wrote her. I can

Ela tem nome

Ela tem nome, mas eu não lembrava. Andava meio sumida, reclusa. Como se não tivesse mais espaço no mundo. É tímida e frágil. Desaparece ao menor sinal de perigo. Tem muitos amigos e admiradores, mas mesmo os melhores amigos, não se sabe porque, vez por outra esquecem dela. Às vezes por muito tempo. Como se ela não tivesse telefone. Como se fosse inalcançável. Ela é famosa. Já fizeram várias músicas sobre ela. Livros e filmes também. É uma lenda viva, e fugidia. Tenho sorte de ser amigo dela. Também sou dos que a esquecem vez por outra. Em várias ocasiões chegaram a cogitar a morte dela. Mas quando já era quase certo que tinha partido, aparecia, linda e radiante, mesmo que por um momento. Lembrei muito dela este final de ano. Sempre lembro dela neste período. Deve ser as férias, ou talvez o espírito Natalino, sei lá. Hoje acordei, tomei dois cafés e fui vasculhar vídeos antigos. Tem um do meu mais novo, recém-nascido, gargalhando enquanto a mãe fingia que comia sua ba

O ensaio acabou

O ensaio acabou. Eles estavam exaustos. O ventilador de mesa nunca dava conta de mantê-los sãos nos dias de verão. Nos intervalos, cigarros e tererês, enquanto o guitarrista brincava na bateria (amor antigo para o qual nunca se entregou, mas continuava paquerando). A casa era de madeira, do baterista obviamente. No quarto ao lado, dormia a recém-nascida. Em poucos dias gravariam o primeiro CD, na época em que gravar CDs era um grande feito. As músicas estavam no ponto, ou pelo menos era o que achavam até entrarem no estúdio. O estúdio também não tinha ar condicionado, a não ser na sala de gravação. Estavam todos ansiosos. Foram dois dias só para ajustar e gravar a bateria (só o guitarrista teve saco de acompanhar todo o processo). Duas semanas no total para finalizar a obra. Depois de muitos cigarros, cervejas, erros e stress, a bolachinha ficou pronta. A pior parte foi a mixagem. A pior parte é sempre a mixagem. É quando você tenta arrumar o que não tem conserto.

Maturidade

- Eu até esperava os cabelos brancos e a barriguinha, mas a maturidade e a serenidade que os acompanham não estavam nos planos. Droga! - Mas é legal isso! Não é porque é maduro que precisa ser chato né? - Sei lá, estão aparecendo algumas manias que eu não estou gostando. - Se você não está gostando ... - Tá bom palhaço, estou falando sério aqui. Crise da meia idade porra! - Desculpe, é que não me sinto assim. Dá para ser maduro e sereno, sem deixar de ser cool . Tipo um Elvis Costello tocando com os Beastie Boys no SNL. - Bom argumento. - Sem contar que a gente fica mais charmosão, as meninas olham mais. - Sim, olham com dó, e um pouco de medo. - (risos) Fale por você! Comigo é só dó. - (risos) - Faz o seguinte, pega a Marta e as crianças e cheguem lá em casa hoje à noite. Fazemos um churras e enchemos a cara. - Beleza, mas vê se compra carne naquele açougue que eu te mostrei da última vez. E nada de Heineken, vou levar só Stella.