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Sem Planos

Esses carros modernos, pensou Marta, são tão estáveis e silenciosos que você passa dos cento e quarenta sem nem sentir.

Ela estava dirigindo para visitar seu filho na faculdade em Florianópolis. João Lucas fazia engenharia mecânica, estava no segundo período e ainda tinha na cabeça o vácuo corriqueiro que se forma em calouros: entre esvaziar o cérebro dos decorebas inúteis necessários para passar no vestibular e enchê-lo novamente com cálculos, fórmulas, gráficos e tabelas, um pouco menos inúteis, que a engenharia exige.

Três horas e meia de estrada para encher a geladeira do ingrato, que dará um aceno blasé quando ela chegar de viagem e entrar no minúsculo apartamento que ele divide com outros dois cabeças-oca.

Marta olhou para a tela do seu BYD. Faltavam apenas oitenta quilômetros para chegar, mas as notícias não eram nada animadoras: trinta quilômetros de engarrafamento à frente. Segundo o aplicativo de GPS, a causa seria um acidente grave que estaria bloqueando a estrada. Preparou-se psicologicamente. Sabia que, naquela estrada, isso poderia significar horas parada. Pior, começou a se preocupar fazendo contas e imaginando se o seu iPhone com rodas aguentaria esse tempo todo antes de pedir uma carga urgente.

Desacelerou o carro para evitar a parada abrupta quando o final da fila chegasse. De fato, pelo que parecia, o final da fila já deveria ter chegado, pelo menos era o que o GPS mostrava. Nada de final de fila, a estrada continuava vazia. Marta estranhou. Esses aplicativos estão cada vez mais precisos, com a colaboração online de milhares de usuários; quase nunca erram uma coisa destas. Forçou a vista no horizonte da estrada que agora parecia uma reta infinita. Até onde conseguia ver com o que seus óculos vencidos permitiam, nem sinal de engarrafamento. Desligou e ligou a multimídia do BYD, colocou o endereço do filho, esperou o cálculo rápido do GPS e lá estava a linha vermelha do engarrafamento que deveria tê-la parado já a uns dez quilômetros. Faltavam aproximadamente vinte para o acidente que, tudo indicava, não estaria lá.

Agora mais lenta, ainda esperando encontrar o fim da fila que o acidente teria causado, Marta começou outra viagem. Essa para o seu interior.

Começou a tocar Better Man do Pearl Jam, e Marta reviveu os momentos duros com o pai de João Lucas. Era o amor da vida dela, até começar a ficar violento. Marta não havia sido criada para apanhar de homem e largou o marido assim que os abusos começaram, mas nunca deixou de amá-lo. À distância, a dor da saudade parecia maior que a dor dos tapas, e Marta chegou a considerar uma reconciliação. Ao mesmo tempo Marta começava a ficar cada vez mais envolvida na gestão da sua startup de suporte psicológico online, especialmente para mulheres que sofrem de abusos físicos e emocionais. João Lucas já estava na escola e o negócio começava a crescer exponencialmente. Entre as árduas tarefas de criar um menino sozinha, esquecer do homem que abusava dela e preparar o negócio para a venda, Marta foi se transformando em uma mulher diferente do que era quando mais jovem.

E era nisso que ela pensava agora. O que houve comigo? Tudo é tarefa, compromisso, missão. Nada acontece mais ao acaso, sem planejamento na minha vida, lamentava para si mesmo, dando-se conta de que muitas vezes as coisas sem planejamento traziam as maiores alegrias, e óbvio, os maiores riscos.

Faltavam apenas três quilômetros para o local do suposto acidente que atrasaria a viagem de Marta. Nem sinal de engarrafamento ou qualquer coisa que denunciasse que o GPS não havia enlouquecido.

Marta estava decidida. Já tinha dinheiro suficiente para aposentar três gerações, depois que vendeu sua bem sucedida startup. João Lucas estava bem encaminhado nos estudos universitários. A lembrança do homem que amava já havia sido amortecida por muito trabalho e igualmente muitos encontros casuais e sem significado algum.

Um quilômetro para o local do acidente.

Vou chegar sem atrasos, comemorou Marta. Havia decidido largar tudo e viver uma aventura por dia pelo resto da vida, sem planejamento algum, e não via a hora de contar a novidade para seu filho, que obviamente deduziria que a mãe estava louca.

Uma lágrima escorria pelo rosto de Marta, emocionada com uma simples decisão que mudaria sua vida para sempre. Olhava fixo no horizonte quando, no exato local onde o GPS marcava o acidente, um caminhão atravessou a pista, em sentido contrário, e encontrou Marta de frente.

A vida planejada de Marta havia encontrado um fim, igualmente planejado. Não por ela desta vez.



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