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Merecidos anos novos


Se tem uma grande coisa sobre este ano de 2016, é que ele não passou suave. Pelo visto para quase ninguém. Ele deixou marcas, algumas profundas. Não é disso que sempre reclamamos? Que nada acontece, que o tempo voa, que a rotina nos engole? Não teve rotina em 2016, a não ser a da reclamação.

Claro que foi um ano duro, não dá para dourar a pílula. Nem se deve. Perdi incontáveis noites de sono em 2016. A situação da política, da economia, da segurança, acordamos sem saber se vamos dormir empregados, ou com nossas empresas ainda operando, o nível de incerteza foi absurdamente mais alto do que o brasileiro entende como normal e confortável. Esse ano foi tudo, menos confortável.

Mas que ano foi esse! Talvez o único que lembrarei para sempre desta década. O mais importante aconteceu, e não acontecia há algum tempo. Eu aprendi como nunca. Comentei com alguns colegas e familiares que fazia anos que eu não aprendia tanto, e é verdade. Em 2015 uma grande empresa familiar de moda em Santa Catarina me acolheu, e eu não poderia ter encontrado empresa melhor, desafio maior e cidade mais perfeita para me encaixar, e encaixar a minha família. Mas foi em 2016 que os testes se colocaram com foça total a cada dia e, com eles, o aprendizado. Aprendi muito sobre este ramo novo de negócio, que antes não fazia parte da minha caixa de ferramentas. Aprendi novas técnicas, que se mostraram necessárias para enfrentarmos a situação que se colocou (só de uma delas foram 10 livros, várias horas de conversas e simulações e um novo treinamento formatado como resultado). Assumi áreas novas na empresa, conduzi projetos difíceis, nem um pouco populares, perdi pedaços importantes da minha equipe e vi colegas talentosos saírem. Tive que passar segurança e garantir a motivação da equipe, mesmo estando inseguro, apesar de muito motivado. Tive que confortar colegas e amigos, ser duro nas decisões impopulares, enquanto mostrava o caminho do futuro, muitas vezes ainda nebuloso. Enfim, nada diferente do que milhares de brasileiros, responsáveis e profissionais passaram, ao contrário do que possa parecer no dia-a-dia, com muita dor no coração, mas sabendo que era a opção correta, para não dizer a única. Corte de custos, inteligente ou não, passa por corte de postos de trabalho, e isso muda a vida das pessoas. De quem sai, de quem fica e de quem já estava à procura.

Depois deste exercício violento (já tinha vivido algumas situações deste tipo, mas nunca desta envergadura), veio o segundo aprendizado: humildade. A gente sempre acha que é humilde, porque é bonito dizer que somos. E eu de fato me acho um cara simples e humilde, mas a humildade não está só na proximidade com as pessoas, e no discurso de bom moço, de autodepreciação forçada para gerar um efeito de empatia, e de realmente se importar com as coisas triviais da vida dos outros. A verdadeira humildade aparece quando você é tão bombardeado por más notícias, desafios e dificuldades que não vê outra opção senão realmente escutar. Do jeito certo, sem pensar no que vai responder, mas internalizando e processando o que está sendo dito. Saí de muitas enrascadas neste ano difícil de 2016 escutando. Tomei melhores decisões (muitas ainda erradas, obviamente). Fui mais humilde. E foi bom. Tão bom que não pretendo voltar, mesmo quando as coisas melhorarem muito e o terreno para nossa arrogância volte a ficar fértil.

Se tem uma coisa que não podemos dizer de 2016 é que ele foi um ano medíocre. As coisas boas, foram muito boas (até porque foram mais raras, o que sempre aumenta a sensação positiva de qualquer coisa, e isso é uma lei de mercado, não é filosofia). As coisas ruins foram de lascar. Não se demitiu gente de baixo desempenho, fechou-se unidades inteiras. Não se fez cortes de custos para atingir o orçamento, jogou-se o orçamento no lixo e cortaram-se todos os custos remotamente duvidosos para garantir o fim do mês. Não se deixou de investir em treinamento, começou-se a questionar a verdadeira necessidade de se treinar. Pessoas boas estão no mercado, desesperadas por emprego, porque gastar com treinamento? Essa era uma pergunta que ninguém fez, mas estava na cabeça de todos. Claro que é ridícula, mas quando o desespero bate meu amigo, coisas feias começam a não parecer tão feias assim.

No final das contas, com tudo isso, a saída mais fácil é reclamar da vida. Ó dia, ó azar! era o que dizia aquele famoso personagem dos desenhos animados. Eu prefiro olhar de um jeito diferente. Se tem um ano que me preparou para o pior, que me ensinou como nunca, que baixou minha bola e colocou minha cabeça no lugar, este ano foi 2016. E isso é bom. Com dor, mas bom. Claro que se a vida for sempre essa montanha russa, não sobra tempo e energia para aplicar de maneira construtiva o aprendizado. Os japoneses já diziam, ao definir kaizen, que a melhoria deve ser sempre seguida de um período de estabilidade e padronização, caso contrário, com melhoria em cima de melhoria, você já nem sabe mais o que está melhorando e se os resultados de fato vieram.

Espero então que 2017 nos dê uma trégua (não espero um ano fácil, veja bem) para que possamos colocar em prática o nosso aprendizado e tentar colher alguns bons frutos. Mas para isso, temos que mudar muito como povo.

Sou brasileiro até o osso, apesar do nariz grande, que denuncia minha descendência árabe por todos os lados. Amo nosso país e quem me conhece sabe que sou um otimista irritante. E essa foi uma das coisas não tão positivas de 2016. Esse ano conseguiu abalar fortemente o meu clássico otimismo. Não entenda errado, não estou falando de otimismo sobre as coisas triviais. Cedo ou tarde encontraremos maneiras de sair do buraco, algum novo país que fez a lição de casa voltará a comprar nossos minérios, nossos grãos, nosso petróleo, e acabaremos retomando nossos empregos e nosso “crescimento”. Estes ciclos macroeconômicos não têm este nome à toa. Meu otimismo está muito abalado em relação ao nosso povo. Sim, eu e você. Tenho refletido muito sobre as possíveis causas dos nossos problemas. Toda vez que aparentemente estamos decolando, que dizem ter chegado a nossa vez, damos um jeito de voltar para o buraco. Por que diabos isso acontece? Quem sou eu para ter a resposta, mas pelo menos tenho duas convicções que podem ajudar na discussão.

Em primeiro lugar, somos paternalistas. Sim, cuidamos dos nossos filhos ensinando-os a ganhar o peixe e não a pescar. Abominamos a palavra meritocracia, pois já assumimos de saída que nem todos têm a mesma chance, portanto temos que cuidar de alguns filhos mais do que dos outros. Pior, temos que condenar alguns filhos que estão melhores do que os outros, porque mereceram estar, mas o outro, coitado, não teve as mesmas chances. Em algumas universidades, com cursos de 40 ou 60 vagas, apenas 5 estão disponíveis para quem não se encaixa em alguma minoria. CINCO. A mensagem que está sendo passada é: não estude, não se esforce, não mereça, pois dá na mesma. As pessoas não sabem batalhar pelo que querem, na verdade não foram treinadas para isso, nem acham que vale a pena. A geração que está agora conduzindo a economia do país, é uma geração mimada, que não passou por dificuldades, que ganhou tudo de mão beijada e não sabe como agir na crise. Você entra em uma loja, vazia, às moscas, e a vendedora te olha com cara de derrota, já prevendo que você é mais um que não vai comprar nada. Em alguns casos fica braba porque você fala que só vai dar uma olhada. Todas as vezes que falo que vou dar uma olhada, acabo comprando alguma coisa, menos com essa vendedora.

Recentemente, um colega que perdeu o emprego me pediu uma recomendação no Linkedin. Fiz o que não se faz e respondi “apesar de te conhecer, nunca trabalhamos juntos, me conte então um pouco sobre tuas habilidades, tuas qualidades, etc, assim posso fazer uma recomendação genuína”. Ele nunca me respondeu. É assim o brasileiro. Te pedi um favor, faça, não volte com questionamentos. Idem para um ex-aluno que pediu ajuda em um trabalho de conclusão de curso. Me empolguei, como sempre, e respondi para ele com umas 10 perguntas. Minha intenção era entender bem o cenário e dar uma puta resposta para o problema dele, mas o fiz dando um pouquinho mais de trabalho para ele. Nunca mais me respondeu.

Não queremos brigar pelo que queremos, e sim ganhar. Não queremos merecer o que queremos, pois achamos que já merecemos, afinal sempre nos disseram que deus é brasileiro certo?

Achamo-nos um povo sociável, amigo e do bem. Não poderíamos estar mais enganados ao nosso próprio respeito. Os maiores vilões estão sempre sorrindo. Amigo mesmo é o cara que não sorri, não te convida para tomar uma gelada, mas não tenta ultrapassar todo mundo no acostamento das estradas lotadas impedindo que uma ambulância salve uma vida, porque o desgraçado (e que fique bem claro aqui que não estou usando as palavras que gostaria) precisa chegar 5 minutos antes na praia. Não somos sociáveis, somos egoístas, mimados e insensíveis, a não ser pelas nossas próprias causas. A Lei de Gerson, essa é a nossa lei. Mas é muito pior, mais grave e mais profundo que isso. Aplicamos a Lei de Gerson, queremos levar vantagem em tudo, convictos de que no nosso caso específico isso não é um problema. Em todos os outros casos é, no nosso não, e daí vem um festival de explicações. Somos egoístas e corruptos, em diferentes níveis, assim como todos os que criticamos. Nos autoenganamos (obrigado Sr. Eduardo Giannetti por um dos melhores livros já publicados em língua portuguesa) o tempo todo, para nossa própria sanidade mental, e para desgraça do nosso país. Não vamos dormir com nenhum peso na consciência, pois agimos de acordo, o inferno são os outros. Não meus queridos, nós somos os outros. Todos os brasileiros são os outros, com louváveis e raras exceções (se alguém conhecer, por favor me apresente, estou precisando recuperar meu otimismo urgentemente).

Minha segunda hipótese de causa para isso que está, sempre esteve e (deusolivre) sempre estará aí, é o fato de não sacrificarmos jamais o nosso presente pelo bem do nosso futuro. Uma das coisas que aprendi em 2016 foi a meditar, e isso tem me feito um bem danado. E meditar é justamente sobre o aqui e agora, sobre nos conectarmos com o que está acontecendo exatamente neste momento, e acredito demais nisso. Mas isso não quer dizer que devamos rifar o futuro do país e das próximas gerações. Devemos nos concentrar no que podemos fazer agora para garantir o futuro, isso sim. Todas as grandes nações sacrificaram algo que lhes era muito caro pensando lá na frente. O mesmo vale para indivíduos, geralmente os ricos sacrificaram algo quando ainda eram jovens e tinham energia sobrando, os longevos não comeram tudo o que gostariam e sacrificaram horas de lazer para cuidar do corpo, e assim por diante. Nós não somos assim. Queremos aproveitar as coisas agora, que se lasque o futuro, até mesmo porque não estaremos lá para ver. Não somos amigos nem dos nossos descendentes. De uma certa forma, esta segunda hipótese conecta-se com a primeira e uma reforça a outra. Uma espiral negativa que nos segura onde estamos.

Falamos mal dos nossos governantes, mas eles resumem muito bem quem somos. Egoístas, mimados, não se comprometem como nada além de seus mandatos e, sabendo que adoramos paternalismo, nos tratam como filhos mimados, que recebem a mesada, mas não estão autorizados a se meterem nos negócios do pai.


Como eu escrevi no começo, 2016 foi um ano de enorme e dolorido aprendizado. Um dos melhores anos da minha vida. Para mim este aprendizado foi pessoal, profissional e espiritual, e valeu muito a pena. As conclusões sobre quem somos como povo é que tem me incomodado, pois sei que mudar isso leva muito tempo. Mas sei também que não adianta apenas apontar as hipóteses, mas agir sobre elas, desde já, se é nisso que você realmente acredita. Estou fazendo minha parte, comigo mesmo, com quem está ao meu redor, com meus alunos, meus filhos, e assim por diante. E aí vem o otimismo que ainda me resta, continuar lutando, não apenas aquela luta diária, estéril, medida pelo esforço, mas a luta verdadeira, meritocrática, transformadora, medida com resultados. Eis meu compromisso de ano novo, ou melhor, de anos novos.

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