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Oriental


Sabe quando você está distraído, sem fazer nada, e fica olhando, sei lá, para o azulejo da cozinha, ou o piso da churrasqueira e assim, do nada, identifica uma forma conhecida. O rosto de alguém, um dragão ou a Luma na Playboy de 2001? Você fixa o olhar para não perder aquilo, vai abrindo o ângulo para tentar geolocalizar a figura e depois poder mostrar para alguém (centro do canto superior esquerdo do terceiro azulejo da segunda fila de cima para baixo) e, mesmo assim, quando olha novamente ela não está lá? Então, é mais ou menos assim a história que eu quero contar. Eu via ela claramente, fiquei pensando nela sem parar e fui guardando elementos, para depois poder colocar no papel, e agora que quero contar, ela meio que sumiu. Claro, não era uma Luma, estava mais para o dragão, mas parecia boa.

Começava com um personagem normalzão tendo algum tipo de problema existencial leve, algo como pedir uma pizza de quatro queijos (sabendo que ali no máximo tem uns três, sendo que um deles é catupiry, o que não conta como queijo) ou um cachorro quente do Au-Au. Nada que fosse mudar o rumo da história, mas aos poucos a coisa ia complicando. O entregador da pizza de dois queijos verdadeiros e um que não é queijo não é um entregador, é uma entregadora. E ela é linda, com uma pinta na testa e olhos puxados, rabo de cavalo e óculos. E ela tem um sotaque que ele não tem a menor ideia de onde seja. Quando ela perguntou, distraidamente, se ele gostaria de experimentar a pizza oriental da próxima vez, a coisa desandou.

A cena cortava com os dois na cama, claro, mas não antes, nem durante e nem depois. Bem depois, com as crianças já grandes. A mais velha casada, com dois meninos; e o mais novo morando com a noiva já há um bom tempo. E é aqui que a história começaria para valer. E é aqui que eu perdi a conta dos azulejos. Lembro da imagem do dragão, mas não consigo mostra-lo para ninguém.

Claro que com um pouco de esforço consigo lembrar que eles tinham vivido bem até ali, o que era uma grande decepção para ambos, em se tratando de um relacionamento que começou com uma cena típica dos melhores filmes x-rated. Vivido bem até ali não era o que eles esperavam. Queriam aventuras, emoções, perigos, intensidade. Acabaram assim, em um casamento tão sem graça quanto uma pizza quatro queijos.

Foi por isso que pediam comida em casa quase todas as noites. Cada vez que o interfone tocava o coração de ambos disparava. Quem será que veio entregar? Será que é a Luma, ele pensava. Será que é a Luma, ela também pensava. (Na verdade eu é que estou pensando na Luma desde o primeiro parágrafo, mas como não lembro direito da história, vou improvisando, os personagens vão me perdoar). Ou um psicopata, ou alguém famoso em uma pegadinha de programa de Domingo, ou o Tiririca. Qualquer coisa que pudesse tirá-los da rotina, apimentar um pouco a relação.

Dessa vez não era ninguém. Atendeu o interfone e não teve resposta. Desceu as escadas do seu apartamento e não tinha ninguém no portão da frente. Subiu novamente e quando se sentou para continuar esperando, o interfone tocou mais uma vez. Atendeu. Nada. Falou alto para garantir, nada. Olhou pela janela, ninguém lá embaixo. Não teve nem tempo de sentar no sofá, o interfone de novo. Foi atender meio desconfiado, olhou antes pela janela, mas lá de cima não dá para ver se a pessoa estiver em um determinado lugar. Atendou já irritado e nada de resposta. Começou a ficar nervoso. Ligou na pizzaria, falaram que o pedido já tinha saído. É sempre assim, o pedido já saiu, nunca dizem quando exatamente e nem se já estão entregando ou se vai levar mais uns três dias. Foi o tempo de desligar o telefone, o interfone tocou pela quarta vez. Dessa vez ele não atendeu. Olhou para ela, que a esta altura já estava começando a chorar e ...


Foi aí que perdi todas as referências. Meu GPS falhou. Não lembro mais da história, e não quero inventar nada assim, forçado. Caso eu lembre, eu termino de contar, por favor entenda. Enquanto isso, vou atender o interfone, deve ser minha pizza. Oriental.

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